domingo, 31 de julho de 2011

O amor em tempos de guerra


Naqueles dias era olhar pela janela a vida, passando. A mesma poltrona, o mesmo ângulo, a mesma paisagem tantas vezes vista. Mas ainda era possível descobrir insignificâncias. Só elas surpreendem. As grandes coisas são sempre as mesmas. As pequenas, no entanto, permitem encontrar o novo.
Havia chovido, coisa rara por esses lados. E agora que a chuva dava uma trégua as pessoas começam a sair de casa. Duas crianças brincam à beira de uma poça d’água que virara lago. Do outro lado da rua um cachorro bem empertigado, parecia cioso de sua imagem. Só de vez em quando deixava sua pose altiva para coçar uma ou outra pulga traiçoeira. Na casa em frente um casal se despede com um beijo previsível. Gotas ainda escorrem.
De repente sentiu o estômago contrair-se num espasmo. Conhecia bem aquela sensação, mas distraída que estava, não teve tempo de se prevenir do que estava por vir.
À distancia o rádio ecoava uma notícia. Parece que falava de um ataque aéreo, alguma coisa sobre uma pequena cidade ao norte da Espanha. A voz conhecida do locutor foi ficando cada vez mais perto e tomou seus pensamentos:  “A cidade foi completamente incendiada antes da evacuação das tropas governamentais. Os caças despejaram suas bombas sobre a cidadezinha precisamente às 16:45 horas. Durante as 2 horas e 45 minutos seguintes os moradores viram o inferno desabar sobre eles. No fim da jornada contaram-se quase dois mil mortos numa população não superior a 7 mil habitantes. O governo Britânico providencia a urgente evacuação de mulheres e crianças daquela área. Membros do partido nacionalista divulgam notícias que atribuem os ataques aos vermelhos. Falou o seu Repórter Esso, testemunha ocular da história.”
Inicialmente a notícia deixou-a pensativa, mas depois, enquanto penteava seus longos cabelos castanhos, deu-se conta de que não conhecia nenhuma daquelas mulheres e a tal cidade ficava mesmo tão longe... Empoou um pouco mais o rosto, passou o batom deliciando-se com a curva que ele faziam em seus lábios. Mas quase três horas de bombas? Não deve ter sobrado muita coisa em pé. Olhou mais uma vez no espelho apertando um pouco os olhos, como se assim, entre as frestas, ela conseguisse ficar mais bela. Pensava em como seria o encontro dessa noite. Ele provavelmente a convidaria para passear de carro após a festa. Tomara que tenham conseguido salvar as crianças. Borrifou um pouco mais de perfume, pegou a bolsa e saiu.
O encontro havia sido marcado no salão de festas da casa paroquial. Não ficava muito longe, mas por medo de desmanchar os cabelos, preferiu tomar um taxi. A possibilidade de encontrá-lo em breve deixava a noite ainda mais quente. Da última vez tinha tentado subir a mão sob sua saia e ela só não saiu correndo porque as pernas pesavam tanto que seria impossível dar um só passo. Não sabia de onde vinham aquelas ondas, mas era algo entre o inferno e o paraíso.  
Ainda eram quinze para as oito e não queria ser a primeira a chegar. Não precisa ter pressa moço, dirija devagar. Obedecendo à sua ordem o motorista relaxou no banco e aumentou o volume do rádio: “Ontem, ao luar,/ Nós dois em plena solidão, /Tu me perguntaste o que era a dor de uma paixão. Nada respondi! /Calmo assim fiquei!/ Mas, fitando o azul do azul do céu,/ A lua azul eu te mostrei...”
Entrou já procurando por ele. Seus olhos percorreram o salão sem encontrar ninguém conhecido. Por um momento pensou que seria melhor não ter vindo. O que vão pensar de uma moça sozinha numa festa dessas? Bobagem, já estava ali. Era só encontrá-lo e tudo ficaria bem. Mais uma vez varreu o espaço. Nada. Sentia os olhares de alguns desconhecidos cruzarem com os seus vez ou outra. Como ousam? E desviava. Meia hora além do combinado, e nada. Resolveu ir até lá dentro, onde ficava o espaço reservado para a dança, só para disfarçar um pouco, pois já estava sendo perceptível sua aflição.
Venceu os dois degraus que separavam os cômodos com cuidado para não pisar no vestido. Ergueu a cabeça e aí então sentiu o mundo rodar. Lá estava ele, braços dados com uma mulher. Parece que ria e contava uma história, talvez. Os olhos percorreram o corpo da outra e já não podia ver mais nada além. Sua pele alva contrastando com o vestido preto era um acinte e  a boca pintada de vermelho movia-se enquanto ela falava, abrindo e fechando numa agitação sinuosa. Não conseguia parar de olhar e a boca se mexia mais e mais rápido como se dela saísse ao mesmo tempo toda a história da criação e do fim do mundo. Quando conseguiu desviar o olhar sentiu uma tontura e o espasmo no estômago. Ele a desejava, era claro. Naquele momento pensou que não tinha o direito de estar ali. Olhou novamente. As pessoas, não tinham rosto, tinham ficado todas iguais. A musica continuava, mas percebeu que não havia ninguém tocando. Teriam ido embora? Em playback ao seu redor todos riam e ao fundo aquela musica continuava. Continuava. Continuava: "Se tu queres mais/ Saber a fonte dos meus ais,/ Põe o ouvido aqui/Na rósea flor do coração..."
De repente barulhos, o rádio havia perdido a sintonia. Droga, cadê essa enfermeira que nunca está por perto? Agora que levantar dessa cadeira exige ensaios e que manter as pernas eretas parece um trabalho de Hércules. Da cadeira até a mesinha não eram quatro metros, mas o esforço para chegar até lá era considerável.
Conseguiu sintonizar numa estação de notícias: “Uma bomba explodiu na última sexta-feira em meio a prédios do governo em Oslo, e um homem com farda policial em seguida abriu fogo em um acampamento juvenil numa ilha próxima, em incidentes que já somam mais de 74 mortos. Foi o pior atentado na Europa Ocidental desde as explosões de 2005 nos transportes públicos de Londres. O duplo atentado tem algumas características da Al Qaeda, e analistas sugerem que imigrantes islâmicos podem ser os responsáveis.”
Enquanto ouvia a notícia voltou no mesmo passo pesado. Setenta e quatro mortos? Pensou enquanto lutava para sentar novamente na poltrona. Pensou em como já vibrou esse corpo que agora doía. Tinha que ter sido com ele, se não fosse aquela outra, se tivesse chegado mais cedo, se ao menos tivesse tido coragem... Já pensou se caio? Dizem que se fraturar uma perna demora uma eternidade pra sarar.
Sentada novamente, o mesmo ângulo, a mesma paisagem, sentiu a mão da enfermeira bater no seu ombro e lhe entregar uma pílula, mais uma. Artrite, glaucoma, diabetes, cada qual com sua cor.  Engoliu o remédio sabendo que não havia mais tempo. Voltara a chover e com as janelas trancadas o cheiro lá dentro ficava insuportável.
Deixou cair a cabeça e ficou ali, olhando pela mesma janela e pensando no que poderia ter sido.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Uma mulher normal

Saiu de casa naquele dia sem saber para onde. Laura não era afeita a esses arroubos. Muito ao contrario, conhecia sua rotina tão bem quanto aquela rua por onde agora seguia. Mas nesse dia não, precisava se perder. Apesar de transportar a passos tímidos essa idéia incrustada na cabeça, tudo que conseguiu fazer foi atravessar a rua e, chegando à vendinha da esquina, dizer: dois pães, por favor. Na verdade só comeria um, mas só de pensar que aquele homem saberia que na sua casa havia apenas uma boca que era a dela... Pegou o embrulho e voltou para casa.
Todos os dias acordava cedo, comprava pão, regava as plantas com o olhar perdido nalgum ponto distante enquanto aguardava o apito da chaleira gritar impaciente trazendo-a de volta à realidade. Não sabe bem quando começou a ser assim, mas em algum passado, que agora lhe parece uma eternidade, se afeiçoou por colecionar mesmices. Talvez como uma forma de não encontrar imprevistos. Isso era realmente algo que a incomodava.  Qualquer situação a que não soubesse prontamente responder, achar o movimento correto, a expressão adequada, qualquer coisa que fugisse a isso deixava-a levemente angustiada. A princípio levemente. Com o tempo, foi ficando cada vez mais pesado.
Enquanto despeja um pouco mais de água na samambaia cabisbaixa ao seu lado, lembra que foi convidada para o aniversário de uma colega do trabalho. Só o convite em si já era tamanha surpresa que lhe deu câimbras no estômago. Por que será que ela a convidara? Não era o tipo que se costuma querer numa festa. Calada e com uma vida sem nada que valesse uma nota num jornal de bairro, certamente não aliviaria um minuto sequer de enfado àquele que se dispusesse a sentar ao seu lado. Mas, enfim, o convite fora feito e agora lhe parecia menos ruidoso aceitar do que provocar perguntas com risinhos de canto de boca: porque será que não veio, a estranha que senta na mesa dos fundos? Na certa não tinha algo decente com que se apresentar!
E não tinha mesmo. Por isso resolveu – meio relutante se isso seria mesmo uma resolução ou uma determinação escrita em alguma lei desconhecida – sair  de casa e ir comprar um vestido que lhe permitisse entrar e sair da tal festa sem ser notada o suficiente para deixar lembranças. Mas que também não deixasse dúvidas quanto à sua aparição.
Comprar vestidos também não era algo que a agradasse. Não porque fosse difícil encontrar um modelo que lhe caísse bem. Aquele corpo que habitava até que não era feio. Peso bem distribuído, seios ainda resistindo aos efeitos da gravidade - apesar dos quarenta e poucos anos que a acompanhavam -, cintura fina e coxas roliças, herança da avó. E por cima, cobrindo tudo, uma pele alva que o olhar podia percorrer sem encontrar ali sequer uma mancha. Toda essa proporção no entanto, não o fazia mais habitável. Parecia até mais estranho, visto assim em detalhes. Pensou que era melhor parar de pensar antes que desistisse. Pegou a bolsa, bateu a porta sem olhar para trás e dirigiu-se ao ponto de ônibus.
Enquanto aguardava na parada, pensava na sua vida certa. Trabalhava como revisora numa editora pouco conhecida. Tão pouco conhecida como os escritores que ali encomendavam seus livros. Mas era neles que encontrava recheio para seus dias. Deliciava-se quando recebia um novo exemplar entre as mãos, menos por seu conteúdo literário e mais pela chance que teria de riscar, rascunhar, apontar erros de pontuação e gramática, naquelas frases que pediam para ser torturadas.  E assim, entre vírgulas e travessões, ia atravessando o texto de suas dias sem exclamação.
Agradava-lhe a rotina mesclada suavemente pelas novidades que cada livro lhe trazia. Mas orgulho mesmo tinha era do certificado pendurado na parede ao lado da mesa de trabalho, única pista a denunciar quem ocupava aquele cantinho da firma. Ali podia-se ler em letras “Monotype Corsiva: Certificamos que Laura Mendes participou na qualidade de membro da comissão de estudo especial da Associação Brasileira de Normas Técnicas para normatização de citação de documentos.  Foi um trabalho duro, porém gratificante. Afinal, todo escritor que doravante pretendesse citar outra obra, teria que irremediavelmente passar pela dela. Enquanto o ônibus percorria seu trajeto, gostava de ficar relembrando trechos da tal norma: “As citações diretas, no texto, de até três linhas, devem estar contidas entre aspas duplas. As aspas simples são utilizadas para indicar citação no interior da citação”. Exemplo: "Não se mova, faça de conta que está morta."
Antes que pudesse concluir o pensamento, sentiu o corpo ser levemente empurrado para a frente e seu deu conta de que havia chegado ao fim da linha. Mas então passara do ponto e não percebera? Havia atravessado a cidade. A rua comercial onde esperava encontrar um vestido já ficara para trás. À sua frente só uma antiga zona portuária que agora era ocupada por bêbados e outros desocupados. Desceu do ônibus ainda sem entender muito bem o que se passava. Tinha passado do ponto, isso era certo. O que sobrou de certo, no entanto, já não bastava para manter o tênue fio da realidade.
Pensou na sua vida sem imprevistos. Pensou no vestido que precisava comprar, pensou na amiga e no convite. Precisava comprar um vestido. Era isso.  Para quem? A costela herdada respondia pelo osso e isso não era tudo. “O recurso tipográfico utilizado para destacar o elemento título deve ser uniforme em todas as referências de um mesmo documento.” Andava pelas ruas que fediam a mijo, andava mais rápido como quem fugia sem poder olhar para trás. Estátua de sal. A respiração ofegante descompassava o ritmo das batidas do coração. “As referências devem obedecer aos padrões indicados para os documentos monográficos no todo, acrescidas das informações relativas à descrição física do meio.” O rosto ardendo em brasa. Avistou ao longe dois homens que a olhavam com insistência. “Os elementos essenciais estão estritamente vinculados ao suporte documental e variam, portanto, conforme o tipo”. 
Perdida naquelas ruas sem objetivos nem definições, apagou.