sábado, 13 de agosto de 2011

Eppur si muove


René Magritte - La Magie Noire, 1945
Caminhava pela rua quando, não sabe bem porque, sentiu um ímpeto de olhar para cima. E viu o céu aberto entremeado de nuvens. Até aí nada de novo. Saber o céu por cima das nossas cabeças é talvez uma das primeiras coisas que aprendemos quando começamos a andar. Mas aquela mirada havia sido diferente. Enquanto antes sentia como se uma casca redonda cobrisse o teto do mundo, dessa vez, pela primeira vez, percebeu que aquilo não se dava em um único plano. Por trás de cada nuvem se abria um “a mais”, que conduzia além, e um pouco mais... Como círculos concêntricos que se abrem quando jogamos uma pedra na água. Só que sua pedra, contrariando todas as leis naturais corria para cima e sua água tinha o peso do lithium. E mais ainda... também não se tratava de uma massa compacta onde se pudesse enfiar a mão e arrancar um pouco de azul. Mais do que massa, vazio.  
Teria sido o momento de parar não fosse o sentimento de ser sugada naquela onda sequenciada. De repente se deu conta de que aquilo não tinha fim. Pronunciamos a palavra “infinito” como se ela fosse uma igual a outra qualquer, como se soubéssemos o que isso quer dizer: infinito é o que não tem fim. Ora meu caro, não me canse com suas explicações pragmáticas! O que não tem fim não cabe em palavras, nem mesmo nas suas tão seguras de si. Apenas por alguns segundos suportamos um pouco desse caminho que leva a não sei onde e nunca o bastante para captar-lhe as significâncias. E ainda, esse magro instante, não é sempre que acontece. Então me deixe continuar, só um pouco mais...
Nesse átimo de tempo – como pensar a duração frente ao inacabável? – nesse átimo de tempo começou a se dar conta de que em meio àquilo tudo estava lá, redonda e plantada, a Terra. Não a Terra enorme e imponente que desde Copérnico se ensina nos livros de história. Era naquele momento um pequeno grão. Pensou na areia da praia. Imaginou seus pés ocupando uns poucos centímetro de chão e sob eles incontáveis pedaços de areia. Da areia para a praia, da praia para a cidade, da cidade para o país inteiro, do país para o que chamam de mundo..e a terra em meio a ele não passava de uma cabeça de alfinete sustentada por nada. Sustentada por nada, pairando em meio à camadas de vazio que se abrem rumo ao sem fim. Eppur si muove.
E como era bom sentir aquilo.  Era como se o sem limite do mundo se estendesse até seu corpo e já não coubesse mais ali. A pele se soltando e desfazendo-se dos contornos. A loucura deve ser isso, a pele perdendo os contornos. Mas não estava louca. Algum fio de segurança continuava prendendo-a à realidade. Sabia que quando quisesse era só acioná-lo. Mas não queria fazê-lo, não agora. Gostava de sustentar um pouco mais o não saber, um pouco mais entregar-se e aceitar que nada governa o mundo, que correr feito um malabarista maluco pra sustentar as bolas que pululam em torno da sua cabeça é tão sem sentido quanto vestir uma capa de chuva num dia de sol. Descansar.
Foi se deixando levar, os círculos concêntricos já longe iam e com eles as ondas que arrebatavam seu corpo. Antes que me venham falar em Deus, deixe-me logo dizê-lo: Deus não tem nada com isso! Não estou falando de projeção astral, metempsicose ou qualquer outra experiência transcendente. Muito pelo contrario. Estou falando da physis, da matéria, do corpo em todas as suas células e no vazio que habita os espaços entre cada um de seus átomos. Era o mundo, a terra e o corpo. Um dentro do outro, expandindo-se rumo ao insabido. 

Mas era preciso voltar. Ainda não tinha coragem suficiente para continuar. Recorreu novamente às palavras, são elas que dão a linha que enreda a massa disforme do mundo. Num só golpe sentiu cada um dos planos se fechar sobre sua cabeça como as pesadas portas do velho colégio eclesial que frequentara na juventude. Cada uma que batia era um peso que se somava aos seus pés, atulhando seu corpo com um pouco mais de eu. Ser eu é coisa que pesa, não sei se você já se deu conta. Quanto a mim, vou seguindo, arrastando minhas correntes. A cada dia livro-me de alguns elos. Quem sabe um dia atrevo-me a perdê-las todas, ou quase.    

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A Menina Morta

Dolls - Hans Bellmer
A menina morta não tinha mãe. Tanto melhor assim, já que natimortos não são fáceis de carregar. Apareceu pela primeira vez quando tinha sete anos. Nem sei se devo contar. Falar de mortos é como dá-los a chance de viver mais um pouco e, quando fazemos isso, sempre exalam odores fétidos. Mas como não quero ser sua tumba, uso as palavras para exorcizá-la.
 Então eram sete anos. Pouco para conseguir entender o muito do que já se passa numa tão curta vida. Era muito curiosa e estava sempre atrás de desvendar segredos. Nessa idade mais da metade do dia são segredos. Gostava de brincar sozinha uma brincadeira inventada: andar pela casa sem ser vista por ninguém. Ora, esgueirando-se debaixo da mesa, ora arrastando-se como um soldado entrincheirado, parando de vez em quando atrás da porta para ver se era seguro continuar. Assim ia da cozinha ao quintal. E a distancia percorrida era a de um pais inteiro.
 Abrir portas trancadas era do que mais gostava. Atrás delas havia sempre algo não contado. Uma caixa de fotografias, um amontoado de roupas não mais usadas, alguns livros deixados ali na última faxina. Aproximar-se de cada um desses achados já era o prenúncio de uma resposta e isso excitava. Sentia correr pelo corpo frêmitos ligeiros. Devagar pegava o pacote entre as mãos sem vontade de abri-lo logo, só pelo prazer de demorar aquela sensação de quem está prestes a desvendar a resposta. 
 Aquele continha cartas e fotos, era o que mais gostava. Ali podia conhecer coisas do tempo em que ainda não havia nascido. “Querida, não sei por quanto tempo ainda suportarei viver longe dos teus beijos. A distância que nos separa é cruel com o meu desejo. Em breve estarei te estreitando em meus braços e o mundo será só meu. Assinado, o teu amado.” O papel amarelado pelo tempo adicionava um valor a mais ao achado.  Como um colecionador que ao adquirir um objeto antigo perde-se em pensamentos, imaginava: em que mãos andara? Quantos nascimentos e quantas mortes presenciara? Que histórias contaria se pudesse falar? “Minha irmã, precisamos pensar o que fazer com a herança. Mamãe não ia querer que deixássemos tudo nas mãos daquelas duas. Ontem mesmo fui ao cartório mas não posso fazer nada sem a sua presença. Venha logo.” Essa vinha sem assinatura. Talvez pelo conteúdo que anunciava coisas de conspiração familiar. Pela letra redonda e caprichada, no entanto,  imaginava-se logo que era carta de mulher. Lá no fundo da caixa, fotografias em preto e branco. Todas pessoas desconhecidas. Três mulheres em uniforme de colégio sentadas em um banco. As caras tristes não demonstravam muito prazer em estar ali, sendo fotografadas. Num outro retrato uma moça vestida de forma ousada para aqueles dias, segura uma sombrinha e sorri.             
 Deste modo iam se passando os dias, entre camisolas amareladas e livros que não se podia ler na sala. Brincando de ser invisível, nunca ninguém poderia saber dos enigmas desvendados. Era bom que fosse assim. 
 Já havia explorado quase todos os aposentos da casa. Faltava apenas o quarto dos fundos. Este era sempre deixado para depois. Talvez porque era supostamente o mais rico, talvez porque em algum lugar escondido já soubesse que quando chegasse ali, teria que dar por finda a procura.
 12 de dezembro foi o dia escolhido para esta expedição. O natal se aproximava e a casa já estava cheia de visitas. A primeira vista, isso poderia dificultar o acesso ao dito quarto sem ser vista. Mas o aumentado risco de ser flagrada só incrementava a excitação. A hora era a da metade da manhã quando alguns já saíram para o trabalho e outros estão ocupados em preparar o almoço. O cheiro bom que vinha da cozinha denunciava que teríamos carne assada de panela. Mas agora não era hora de pensar nos prazeres da carne, pelo menos não na da panela. Com a estratégia montada, agora era atravessar a cozinha rastejando. Se alguém viu, ignorou imaginando ser coisa de criança.
   O coração em pulos enquanto cruzava a sala tentando não fazer barulho. Vozes. Respiração suspensa. Outra inspeção pelo cômodo, é seguro seguir. Pé ante pé e já é possível avistar o corredor que leva ao quarto dos fundos. Transposta a porta não se consegue enxergar nada lá dentro. O quarto não tem janelas. Mesmo de dia é de uma escuridão gutural. Mas é possível vislumbrar os contornos da velha cama de dossel que já está ali ha tantas gerações que ninguém nem se lembra mais quando entrou pra família. Ao seu lado um guarda-roupas de madeira vindo dos mesmos tempos que a cama. Enorme, pesado e preto, com alças douradas, parecendo uma imensa caixa. As duas primeiras portas, eram abertas sempre que a empregada ia substituir as roupas de cama  e não guardava novidades: lençóis e toalhas sem nenhuma história para contar. Mas a terceira porta, essa ainda não havia sido explorada e, por isso mesmo, era o alvo.
   Abri a porta devagar. Um suor frio encharcava minha roupa pequena. E ali estava ela, me olhando com aqueles olhos... Não, não era olhos, eram buracos. Seu corpo quase do mesmo tamanho que o meu estava sentado na prateleira do meio coberto com uma fina renda cor de rosa antiga. Tão antiga quanto os segredos que eu buscava desvendar. A pele pardacenta parecia fria ao toque que não tive coragem de experimentar. A boca entreaberta como quem quer fazer uma pergunta que nunca foi concluída e por isso mesmo nunca respondida. E os cabelos, ah os cabelos brilhantes e sedosos emoldurando ali a cara da morte sem nenhum pudor! Muito tempo depois pude me perguntar o que faziam ali aqueles cabelos vivos, mas naquela hora eu estava petrificada demais para poder fazer qualquer pergunta. O cheiro de carne vindo da cozinha agora tinha se transformado num odor adocicado e enjoativo que fazia meu estômago revirar.  Ao me dar conta quis correr, quis gritar. Mas era inútil, ninguém podia me ver ou ouvir. Éramos eu e ela. A menina morta me olhava com seus olhos de abismo como que a anunciar o fim de uma inocência nunca vivida.
Não sei o que se passou depois. Se teve almoço, quem eram as visitas, o que foi conversado na hora do café na sala. Não lembro de nada. Só sei que depois daquele dia não brinquei mais de ser invisível. Não consegui mais acreditar na brincadeira -  e nem que quisesse: agora havia olhos por todo lugar. Nunca mais expedições ocultas, nunca mais pacotes furtivos, nunca mais cartas dissimuladas. Mas hoje, quando as vezes quando abro alguma porta na casa onde vivo, sinto emanar aquele cheiro ocre e penso: a menina morta andou por aqui.