terça-feira, 3 de setembro de 2013

O atendimento na clínica contemporânea

(Palestra proferida na Semana de Psicologia da Fanor, 2013)


Quando recebi o convite para falar sobre  " O atendimento na clínica contemporânea" pensei em como poderia organizar uma fala. Primeiramente, parti do significado das palavras "contemporâneo"e "clínica".
Contemporâneo - aquilo que é do mesmo tempo em que se fala.
Clínica - do grego Kliné , debruçar-se, atendimento junto ao leito. Em psicanálise, a clínica é o que se dá no encontro com o paicente, espaço de escuta.
Percebi que poderia tomar esse tema por duas vertentes diferentes, a partir de duas perguntas:
  • a primeira pergunta é se haveria uma especificidade do como se realiza a clinica na contemporaneidade;
  • A segunda, seria do ponto de vista do "com que lidamos" na clinica na contemporaneidade.
Vou me guiar então pela resposta que posso formular a essas duas questões.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que, a clínica a qual me refiro, é a psicanalítica. E o que é a clinica psicanalítica? É aquela que nasce com Freud no início do século XX. 
É interessante ressaltar que, antes de Freud, ja havia a clinica. Com Foucault, no livro o nascimento da clinica, sabemos que a clinica moderna é a clinica anátomo-patologica, que identifica o sintoma a uma lesão nos tecidos e se pauta na observação. Esta clinica, pretende anular tudo que é subjetivo pois considera que esses elementos interferem na observação da doença que deve ser o mais objetiva possível.
A grande invenção freudiana foi ter se interessado por aquilo que não se encaixava nesse modelo. Por queixas que não apresentava base orgânica, mas que faziam sofrer as mulheres e lotavam Salpetrière. Ele se interessou em ouvi-las e ainda atribuiu um sentido ao que elas diziam. Não, elas não era fingidoras, elas tinham algo a dizer com seu sintoma. A partir de sua clinica ele desenvolveu as bases teórico metodológicas da psicanálise que sao,  por uma lado a metapsicologia (nos conceitos de inconsciente, desejo,  pulsão, repetição) e, por outro, a aplicação da regra de ouro que é a associação livre. 
Se tomarmos por esse viés, não haveria muito o que se falar de uma "clínica contemporânea", pois a psicanálise não só não se "atualizou" com o passar do tempo, como poderíamos dizer que essa fidelidade à suas bases que datam de longo tempo é, na verdade, a garantia de que ainda possamos chamar de psicanálise aquilo que fazemos.
Mesmo o grande inovador da psicanálise, que surge no cenário psicanalitico após a morte de Freud, Jacques Lacan, não cansou de afirmar que sua proposta não era a de uma "modernização" de Freud, mas a de um retorno às suas bases que, naquele tempo, ja andavam pra lá de esquecidas. 
Lacan vai apontar que, para que a piscanálise continue merecendo ser assim chamada, ela precisa preservar a lâmina cortante da verdade freudiana, que aponta para a realidade sexual do inconsciente e para o impossível que ela concerne. A política do analista é a política da falta, ele vai dizer. 
Dizer que a política da psicanálise é a política da falta, quer dizer que ali onde haja a pretensão de dar respostas, de completar, de fazer sentido, a psicanálise deve comparecer para sustentar o furo, o buraco, constitutivo de todo discurso.
A clinica psicanalítica do nosso tempo é, portanto, a boa e velha clinica de Freud. ele formulou que esse buraco e o mal-estar estar dele decorrente é constitutivo do ser falante. Formulou ainda que ele existe devido ao fato de estarmos na civilização - de estarmos na linguagem, dirá Lacan. A palavra é sempre insuficiente para nomear o mundo, nomear nossas experiências, nomear nossa angustia. Sobra sempre algum inominável que vai constituir esse furo. A psicanálise não vai buscar preencher o furo. Ela se orienta por sustentar aberto o buraco, sabendo que ele é mal- estar, mas é também constitutivo do sujeito e de seu desejo. Se, furo, não há desejo!
Essa estrutura é atemporal, portanto, nessa perspectiva, não há uma especificidade de uma clinica do nosso tempo . O que há é a clinica, conforme inventada por Freud.
Esso nos leva, então, à segunda questão: haveria uma contemporaneidade do "com que lidamos" na clinica psicanalítica?
Penso que ai podemos formular alguma coisa. Embora o "com que lidamos" seja desde Freud, com o sujeito e seu desejo,  as formações do inconsciente e o gozo da repetição mortífera que se apresenta no sintoma, acredito que podemos falar de uma contemporaneidade do "envoltório formal" desse sintoma. 
O mal-estar decorre da civilização. Mas certamente, a civilização não se estrutura nas mesmas bases que na época de Freud. Só para termos uma ideia dessas mudanças, em um texto como "A moral civilizada e doença nervosa moderna" Freud relaciona o adoecimento neurótico à repressão sexual promovida pela sociedade de seu tempo, com sua moral vitoriana. As histéricas adoeceriam porque, impedidas de terem relações sexuais, chegava ao casamento frígidas após anos de repressão, perdendo o caminho do acesso a sua sexualidade.(Estamos falando de um tempo onde as mulheres "supostamente" esperavam até os 19, 20 anos para casarem virgens).
Quem poderia sustentar uma tese dessas nos dias de hoje? Naquela época, perder a virgindade antes do casamento era quase uma sentença de envelhecer sozinha. Hoje em dia, as meninas de 14 anos vem ao consultório se queixar por ainda serem virgens quando suas colegas já tem vida sexual ativa. Alias, desde muito antes disso, as crianças ( que antes se supunha assexuadas) já são instigadas a se vestir como mulheres, dançar sensualmente, etc. Tudo muito distante da repressão sexual da época de Freud. pelo contrario, somos cobrados a gozar intensa e infinitamente. A sentença do nosso tempo é a do supereu: goza!
Sendo assim, diríamos que estamos menos neuróticos? Nada nos autoriza a fazer essa afirmação. Pelo contrário. Na clínica nos chega cada vez mais sujeitos desanimados, enlutados, entristecidos, desiludidos, desbussolados, desrorientados em relação ao seu desejo... E todos eles nomeados segundo a ciência, com o rotulo de "depressão". O que estaria por trás desse fenômeno? Somos todos deprimidos?
A questão por trás disso é o tal do furo. Na sociedade vitoriana tínhamos um outro a quem atribuir a interdição do nosso acesso ao gozo. O discurso da época dizia que não gozávamos suficientemente porque a igreja impedia, porque a sociedade proibia, porque a estrutura patriarcal se impunha. 
De lá pra cá, queimamos soutiens, inventamos a pílula, a mulher passou a ter papel fundamental na renda familiar (embora ainda receba menos que o homem pelo mesmo trabalho) e os nossos valores se tornaram bem menos proibitivos, quando não, se esvaíram por completo. E, principalmente, ciência tomou o lugar da religião como lugar de acesso a verdade.  
Ao contrario do discurso religioso que diz pra suportarmos melhor o buraco porque vamos ganhar uma vida plena no reino dos céus, a ciência vem para dizer que não precisamos perder tempo esperando (time is money), podemos ter uma vida plena aqui mesmo na terra. Podemos eliminar o sofrimento, o envelhecimento, as doenças e, quiçá, a morte. Basta para isso encontrarmos o produto certo. Antidepressivos, cirurgias plásticas, criogenia..isso vai às raias da loucura quando alguém chega a pagar para ter seu corpo congelado, apostado na descoberta da ressurreição.
O parceiro feliz desse discurso científico é o discurso capitalista. Ora, se para ter a vida plena, basta ter acesso ao produto certo, "nós estamos aqui para garanti-lo!", quase podemos ouvir o slogan dessa espécie de "Organizações Tabajara" generalizada. Se você se sente impotente, seus problemas acabaram! compre um carro gigante e tome viagra. A questão é que os objetos da produção capitalistas que se apresentam para tamponar o furo, não so não se sustentam nesse lugar, como, pior ainda, fazem desaparecer o desejo ao tamponar esse buraco. Saímos da concessionária preenchidos com um carnê de prestaçoes a pagar com mais trabalho que vamos ter que acumular e..desanimados, se, entender porque não ficamos tão felizes quanto às pessoas do Facebook!
Outro exemplo disso, é que certamente avançamos muito com a ciência na cura das doenças e praticamente dobramos a nossa expectativa de vida. No entanto, a ameaça que antes vinha do corpo, agora vem das ruas, da violência sem limites e da drogadição generalizada. 
Dai que Antonio Quinet vai dizer que capitalismo e tecnociência são as "Torres gêmeas" do mal-estar na civilização contemporânea.
A psicanálise surge como o avesso desse discurso. Ela esta advertida de que não gozamos plenamente porque é impossível ao ser falante preencher o furo. E nem seria desejável que o fizesse, pois seria o seu próprio desejo que se esvairia.
A expectativa de encontrar a "metade da laranja" invariavelmente fracassa, por que aquilo que encontramos no outro não é o pedaço que faltava para sermos completos.

Mas se sentir faltando um pedaço dói! O que vamos fazer então? Resignarmo-nos no sofrimento? E ainda sem a promessa de vida eterna? Me Funai, antes não ter nascido...máxima da tragédia grega?
Não é essa aposta da psicanálise. A aposta é que podemos encontrar uma forma de manter o buraco aberto e aprender a fazer algo com ele.. Um assobio, um poema, um amor...mas sabendo que nada pode, nem deve, completá-lo.

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