sábado, 5 de abril de 2014

Escrever, diz ela



 Comemorar o centenário de Marguerite Duras em Fortaleza não é propriamente um lugar comum. A escritora, diretora e roteirista não é tão conhecida em terras alencarinas. Além disso, a própria autora não apostava nas propriedades de laço social que poderia advir de sua obra. Como bem lembrou Dominique Fingermann, ela diz em “A Dor”: “Aqueles que vivem de dados gerais nada têm em comum comigo. Ninguém tem nada em comum comigo."
E no entanto, a escrita dessa mulher me afetou de uma maneira indelével, de um modo estranho, que eu ainda não consigo colocar apropriadamente em palavras. Arrebatadora, ela, e nós os arrebatados, disse Lacan.
Talvez o que permita a essa obra ressoar em Paris ou no sertão do Ceará, seja exatamente, não o dado geral, mas o estranho, o violento, o arrebatamento de algo completamente desconhecido, mas que no entanto, esteve sempre ali.
Estes foram alguns dos afetos experimentados na minha primeira leitura de M.D. O livro era “O Amante” (Sua obra mais conhecida e ganhadora do prêmio Goncourt, o prêmio literário mais cobiçado da França). 
A história, versava sobre uma menina vietnamita em uma balsa fazendo a travessia do rio Mekong e de um homem mais velho, um chinês,  que se tornaria o “amante” em questão. Mas já estavam ali presentes também os diversos elementos biográficos(?) que eu encontraria depois em diversas outras obras. Marguerite fala de uma forma totalmente despudorada da loucura da mãe em sua obstinação em possuir terras; da prostituição velada a que ela se submete e que a família acompanha cúmplice, apenas pela possibilidade de comer em um restaurante; do amor incestuoso pelo irmão mais novo que morreria cedo, devastando M.D., e a fúria sádica do irmão mais velho, o delinquente.
Realmente, nenhuma dessas experiências tem nada em comum comigo. E ainda assim (e talvez por isso mesmo) eu me perguntava, porque isso me revira? Não sei responder. Mas isso me pôs a trabalhar, de várias maneiras.

Parte desse “motor de trabalho” foi o que enderecei ao dispositivo de cartel, elemento constitutivo da formação do analista na Escola de Lacan. Recentemente propus um cartel com o tema “Escrita e psicanálise”, que se encontra em funcionamento. Considero que esta proposta é tributária da minha leitura da obra durrassiana, pois a inquietação provocada era o que estava como pano de fundo.
Com frequência, durante as nossas reuniões, seu nome me vem à boca. Mas continuo ainda sem saber exatamente porque. Talvez o cartel (que ainda está no começo) me permita aos poucos elaborar algo sobre isso. E esse texto já é um começo.
Ele parte inicialmente de uma observação feita pelo “mais-um” desse cartel, na nossa primeira reunião. Discutíamos sobre o quão ampla eram as possibilidades de relação entre escrita e psicanalise: análise de uma obra, o estudo de um autor específico,  a busca por conceitos psicanalíticos em uma obra, etc. Mas nesse dia, foi ficando claro que não era nada disso que se tratava. Até que o mais-um formulou explicitamente a nossa pergunta: do que é que se trata quando se escreve? O “de que se trata” não no sentido do conteúdo, mas do processo mesmo de escrever. O que é Escrever? Porque se escreve? Como se escreve? O que acontece com quem escreve? E com o escrito?
Enfim, essas são questões ainda incipientes e que ainda não podem ser completamente respondidas. Ainda movem ao trabalho do cartel. Mas já que o nome de Marguerite Duras esteve desde o início como pano de fundo para a constituição desse cartel,  pensei que essa oportunidade de dizer algo sobre ela, seria excelente para endereçar-lhe essas perguntas e tentar ver o que ela responderia. Convido-os a seguirmos esse rastro por onde, como já disse Freud, o artista antecipa o psicanalista nas respostas. 
***
Comecemos então com o “o que é escrever?”
Temos aqui uma resposta polêmica de M.D., pois para ela, muitos daqueles que são considerados escritores,  não o são, ou não o foram. Sartre, por exemplo, ela diz que não foi escritor. Pode ter sido um cronista, um sociólogo, um moralista, mas não escritor: “O escritor é um selvagem – e Sartre é mais do que um civilizado.”.
Escrever, para Duras, é algo que nasce da possibilidade de tudo por em duvida. (Écrire, p. 21). A escrita, segundo ela, nasce de um momento fatal do qual não se pode escapar, em que tudo é posto em questão: “o casamento, os amigos, os amigos do casal. Menos o filho. O filho não é nunca posto em dúvida. E essa dúvida começa a crescer em torno de si. Trata-se de um encontro consigo onde não há mais nada a perder, só se escreve verdadeiramente quando se está perdido: quando não se tem nada a escrever, a perder, se escreve.”(Écrire, p.22)
Apesar de fatal e terrificante, esse momento em que tudo é posto em questão é o que abre caminho para aquilo que é necessário para que se possa escrever: a solidão.
Para M.D. só é possível escrever na solidão. Não existe escrita a duas mãos. Ela diz que você pode compor a duas mãos, cantar a duas vozes, por exemplo. Mas escrever jamais. Então é uma solidão necessária,  mas terrificante.
Essa solidão é tributária desse “questionar tudo” do qual não se pode fugir. É dessa dúvida, nasce a solidão. Ela diz inclusive que muita gente fugiria diante do horror disso, e é por isso que não temos tantos escritores assim.
Então é como se escrever fosse esse se descolar do que é conhecido, colocar em dúvida tudo que já se sabe, numa travessia rumo ao desconhecido. Essa é outra indicação dela sobre o que é a escrita: Não se escreve sobre o que já se sabe.  
“A escrita é o desconhecido. Antes de escrever não se sabe nada do que vai ser escrito. É o desconhecido de si, de sua cabeça, de seu corpo. Escrever não é nem mesmo uma reflexão. Escrever é uma espécie de faculdade que se tem ao lado de sua pessoa, paralela a ela mesma uma outra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que algumas vezes, por sua própria criação, está em risco de perder a vida. Se soubéssemos algo do que vai ser escrito antes de fazê-lo, nós não escreveríamos.” (Écrire,p.52)
Essa última frase, foi de Lacan que ela a recebeu. Lacan disse sobre ela: “Ela não deve saber sobre o quê ela escreve. Porque ela se perderia. E isso seria a catástrofe”. Duras ficou aturdida. E fez disso “uma espécie de “identidade de princípio, de um “direito de dizer” totalmente ignorado das mulheres.”

Agora, podemos perguntar sobre quais as indicações de MD sobre o  “Como escrever?”
Então, em primeiro lugar, na solidão. Em segundo lugar, ela diz: com a força do corpo. “É preciso ser mais forte que si mesmo para poder abordar a escritura, é preciso ser mais forte que aquilo que vamos escrever. É uma coisa engraçada, sim. Não é apenas a escrita, o escrito. É o grito das feras da noite, os gritos de todos, os meus e os seus, o grito dos cães. É a vulgaridade massiva, desesperadora, da sociedade. A dor, é também Cristo e Moisés, e os faraós e todos os judeus, e todas as crianças judias, é também o mais violento da bondade.” (Ècrire, p.24)
Enfim, perguntemos agora à Duras: porque escrever?
Para escapar da morte, diz ela. “A solidão é isso, ou o livro, ou a morte”. “Ser escritor é se encontrar diante de um horror onde só a escrita poderá salvá-lo”.
Temos então em M.D. esse conjunto de elementos sobre o que é a escrita e o processo de escrever: a vida posta em questão; a dor; a solidão; a busca por algo que possa salvá-la da morte; a necessidade de nisso colocar o corpo e, eu gostaria de adicionar, a possibilidade de devir outra coisa a partir do escrito. Por exemplo, na entrevista que ela concedeu a Bernard Pivot em 1984 para o programa de TV Apostrophe, ela diz que com o livro “o amante” foi que ela conseguiu perdoar o irmão. E noutro momento quando ela fala da casa que conseguiu comprar com a venda de “barragem contra o pacifico”, obra em que ousou falar da mãe.
Veremos agora o que esses elementos podem nos ajudar a pensar a questão da escrita na psicanálise.
Escrita em Duras e Psicanálise: Pontos de interseção
Lacan aproximou de alguma maneira a função do escrito e aquilo que se processa em uma análise. No Seminário 18, De um discurso que não fosse do semblante, por exemplo, ele diz que “a diz-mansão da verdade em sua morada é algo que só se faz pelo escrito na medida em que é somente a partir do escrito que se constitui a lógica.”
Como poderíamos entender essa frase de Lacan?

Se remetermo-nos a experiência, o que é fazer análise? É antes de tudo falar. Falar livremente, disse Freud, associando. Porque topamos, nós e cada analisante que inicia seu percurso, essa proposta freudiana? Penso que entrar verdadeiramente nisso só é possível quando, como disse Duras, algo é posto em dúvida. Não só os amigos, os amores... mas aquilo que dava sustentação a todas essas relações. Não é quando surge um sintoma que alguém busca verdadeiramente uma análise. Mas quando o “sujeito vê soçobrar a segurança que ele extraía dessa fantasia em que se constitui para cada um sua janela sobre o real”. (Lacan, sem 13 apud Quinet). Nessa frase Lacan está tratando da travessia da fantasia que conduz ao final de uma análise. Mas penso podermos dizer que isto já está colocado desde o início. Sem esse “por em questão” como diz Duras, não há escrita, não há análise.
Daí, a solidão. Também não se faz análise à dois. Primeiro porque a análise promove uma descolagem do outro imaginário, apontando para o impossível de fazermos dois com ele. Depois porque, embora estejam ali presentes, analisante e analista, não se trata de uma relação intersubjetiva. O analista não está ali como pessoa, nem mesmo como sujeito. Ele está ali como semblante do resto que sobrou da divisão constitutiva do sujeito, divisão estrutural e inevitável para todo ser falante. Como disse Dominique Fingermann certa vez aqui em Fortaleza, o amor de transferência diz “dois”. O analista em seu ato, diz “um”.
Então, topamos essa solidão e nela um gozo permitido: tudo falar, livremente, associar. Constituímos assim a diz-mansão ou a mansão dos ditos[1].
Podemos dizer que “interrogar a diz-mansão da verdade” é a função de uma análise. Muitos ditos, que em sua rede de associações começam a remeter a um dizer. A verdade teria a ver com isso, com o dizer que funda todos esses ditos. Nesse sentido, interrogar a verdade seria extrair um dizer, ou seja uma lógica, desses ditos. E isso só seria possível a partir do escrito. Teríamos então uma escrita da análise. Ou, como diz Luciano Elia, num dos primeiros textos que lemos no nosso cartel da Escrita e Psicanalise:
“A função da escrita permite a interrogação sobre a verdade, tornando efetivas e permanentes as consequências do dizer do sujeito em análise (dizer que, fora da escrita, pode esvanescer-se em sua contumaz paixão pela ignorância, pelo não saber) e, como o que permite escrever o gozo em um novo corpo, o corpo de letras que substitui o corpo do sintoma. O corpo do neurótico, mal tratado pelo sintoma, pode ser reescrito em um corpo de letras: o gozo, escrito nesse corpo, não é o mesmo gozo de que o sujeito padecia, no tempo em que as letras que poderiam escrevê-lo estavam para ele perdidas.” (Elia, p.135)

Vemos agora surgir aí a terceira intercessão entre a escrita durassiana e a análise: é preciso comparecer com o corpo. Como disse Freud, “́impossível liquidar alguém in absentia ou in effigie”, sendo que o alguém em questão não é certamente o analisante, mas o gozo mortífero da repetição do qual o sujeito padece.
Mas aqui, acho importante pontuar pelo menos uma diferença radical entre a escrita segundo Duras e o processo de análise. É que, pela operação do discurso do analista, é possível, pelo menos em certa medida, evitar que a passagem ao ato leve o sujeito às raias do suicídio ou do alcoolismo desenfreado. O sofrimento de Duras com o Álcool foi retratado no livro de Yann Andréa Steiner (com quem M.D. formou um improvável casal: ele, um jovem homossexual. Ela, uma mulher já deidade avançada). Apesar de ter tido problemas com álcool ao longo de boa parte de sua vida, o livro M.D. retrata um período em que ela esteve á beira da morte, desacordada por vários meses. Na verdade, na entrevista concedida ao programa Apostrophe, ao ser perguntada se passou por uma ressurreição, ela diz que não e dá a entender que morreu mesmo ali. Enfim, acredito que o desejo do analista pode conduzir as coisas sem carrear tanto estrago.  
Certamente, há diversos outros elementos que afastam a escrita do artista, da escrita numa análise. A possibilidade mesmo de um final onde ocorra essa reescrita do corpo, não acho que seja plenamente viável através da arte. Penso aqui em Ernest Hemingway que, ao ser perguntado se fazia análise, respondeu que seu analista era a sua Corona portátil, número três (referindo-se à sua maquina de escrever) mas que,  posteriormente suicidou-se com a mesma arma com que o pai havia se matado anos antes e que sua mãe o enviara pelo correio. Todos recebemos os desígnio do Outro de alguma maneira, alguns de forma mais trágica e direta...
Então, acredito que seja a isso que Lacan se refere quando diz que o analista seja o único parceiro com alguma chance de responder. Responder fora da repetição e seu gozo mortífero.
 No entanto, a despeito das diferenças, mais uma vez podemos dizer que Freud acertou em cheio quando disse que o artista sempre precede o analista.

(Texto apresentado no Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza, por ocasião da comemoração do centenário de Marguerite Duras)




[1] Com diz-mansão Lacan faz um jogo de significantes que remete à dimensão da verdade, mas também morada da verdade, lá onde moram os ditos.