domingo, 22 de março de 2015

Vendo vozes...e aprendendo com elas!

Acabo de terminar uma viagem por um mundo que me era completamente desconhecido até então. Essa viagem foi proporcionada por uma amiga querida a quem deixo aqui meu agradecimento: Renata Castelo Peixoto*.
 
Há algum tempo, não sei (ou não sabia) dizer porque, senti um vago interesse em saber alguma coisa sobre o universo dos surdos, principalmente em saber se seria possível a experiência da psicanálise para essas pessoas. Foi assim que, numa conversa informal, comentei com essa colega (que é uma pesquisadora da área) sobre minha curiosidade e ela, além de me dizer coisas que aguçaram ainda mais meu interesse, me emprestou esse livro: Vendo Vozes, de Oliver
Sacks.

Devo confessar que essa leitura me veio como um tapa na cara! Eu me assustei em perceber como eu tinha uma visão preconceituosa acerca dessa realidade. Para mim, acho que assim como para a maioria dos leigos ouvintes, o surdo era um deficiente. Mas o que aprendi é que, na verdade, ser surdo é (ou pode ser, desde que dadas as condições para isso) uma autêntica identidade cultural. Não no sentido dos famosos "orgulhos" com que se pintam as bandeiras de determinadas causas que as vezes escorregam no proselitismo. Mas uma identidade cultural no sentido de que é a nossa língua quem nos dá um sentimento de pertença a uma determinada cultura, com todas as suas produções ético-estético-políticas. Como diz o autor em determinado trecho: não é a mesma coisa pensar na língua de Shakespeare ou na língua de Goethe. Minha língua sou eu!

E eu que já havia sido fisgada há algum tempo pela psicanálise, principalmente pelas lentes lacanianas, descobri que podia ir aprender muito sobre essa relação "subjetividade"x linguagem nesse contato com o universo dos surdos. 

Sabemos com Lacan, por exemplo, que a linguagem não é a mera emissão de sons, nem mesmo a emissão de mensagem. A linguagem é o que constitui o sujeito na relação com o outro. Sabemos também que é no corpo-a-corpo erotizador com a mãe que a criança recebe seu banho de linguagem, sua lalíngua, como o psicanalista francês chamou essa primeira inscrição de significantes que, apesar de ainda não formarem um léxico, marcam o gozo no corpo. Será então que isso seria impossível aos surdos? estariam eles (os surdos pre-linguísticos, ou seja, aqueles que nasceram ou tornaram-se surdos antes de aprender a falar) impossibilitados de entrar na linguagem por não ouvirem?

O estudo de Oliver Sacks (ou sua leitura dos estudos realizados por tantos outros)não só responde negativamente a essas perguntas, como atestam as teses lacanianas com uma radicalidade quase cruel: a criança surda não se torna uma exilada da linguagem simplesmente por não ouvir. Mas, quando não exposta a algum tipo de linguagem de sinais até determinado momento de vida, pode ter seriamente prejudicadas suas capacidades de abstração, de representação do mundo, de fazer ou entender a estrutura de uma pergunta, de questionar, de saber que existe um nome para ela e para todas as coisas do mundo. Isso explica porque tantas crianças surdas sejam tratadas como deficientes mentais, pois sabemos, desde Freud que é o processo de curiosidade acerca do mundo que leva à constituição do sujeito.

A impossibilidade de comunicação com os pais pode se abater como uma tragédia sobre a criança surda que fica impossibilitada de dizer de si e do mundo. Fiquei pensando como todos nós, ouvintes ou não, experienciamos de alguma forma, isso. Todos nós experimentamos em algum momento da vida essa impossibilidade de dizer algo e de se fazer ouvir, o que nos deixa sozinhos do lado de fora. Certamente isso é mais radical para uma criança surda, pois se é na linguagem que experienciamos o trauma daquilo que não cabe em palavras, é através delas que sobrevivemos a isso e nos tornarmos sujeito de desejo. 

A criança surda pode entrar na linguagem, comprovam os estudos citados por Sacks. Mas isso só ocorre se ela for exposta a um outro que "fale" numa língua que ela possa apreender com outros sentidos que não o da audição Embora nasçamos com um aparelho biológico que nos permite falar, a linguagem não é um processo natural! Ela envolve necessariamente o tête-a-tête com o outro.

Assim, os estudos também comprovam que basta que essa criança seja exposta a uma "língua de sinais" no contato com a mãe para que o processo de aquisição da linguagem se dê, de forma similiar ao de qualquer outra criança. E traz exemplos de casos muito bonitos como o da pequena Charlotte: perguntadora, cheia de criatividade e de vida!

Aprendi também, na leitura desse livro, que as "línguas de sinais" não são chamadas assim por acaso. Elas não são uma pantomima como pode parecer ao leigo ouvinte. Não se trata de mímica. Elas tem realmente a estrutura de uma língua com uma gramática própria, sujeito e objeto, presente passado e futuro, conjugação verbal e, pasmem, tudo isso é feito utilizando-se do corpo, do tempo e do espaço. 

O cérebro aprende a processar todos esses elementos e combiná-los na constituição de uma linguagem que vai muito além da nossa capacidade de apreensão pois simplesmente não desenvolvemos essas ferramentas: "Ser surdo, nascer surdo, coloca a pessoa numa situação extraordinária: expõe o indivíduo a uma série de possibilidades linguísticas e, portanto, a uma serie de possibilidades intelectuais e culturais que nos outros, como falantes nativos num mundo de falantes, não podemos sequer começar a imaginar."

É realmente surpreendente! De repente, nós ouvintes é, de certa maneira, somos deficientes frente ao mundo dos surdos.

Eu não tenho nenhuma experiência com surdos, não tenho parentes surdos nem amigos surdos, mas de alguma forma meu desejo foi despertado para conhecer esse mundo. E, ali onde eu pensei que fosse encontrar informações técnicas sobre uma deficiência, esse livro me mostrou o quanto tenho a aprender acerca da diferença e do que é possível quando nos abrimos à ela.  Aprendemos, inclusive que podemos não ser tão diferentes assim e que, de repente, aquilo que parecia tão estranho, pode nos ser, na verdade, intimamente familiar. Assim já dizia Freud, não é mesmo?

PS: não foi só com os surdos que me descobri preconceituosa. Também tive que engolir também minhas pre-concepções acerca de neurocinetistas! Enquanto me deliciava com o livro, descobri (por uma triste coincidência) que Oliver Sacks não só é um excelente escritor, mas um ser humano admirável. É que nesse mesmo tempo em que escrevo, Sacks vive seus últimos dias de vida, vítima de uma câncer em estágio terminal. E ele deixa uma carta de adeus muito linda, com um sentimento de gratidão que só os grandes homens podem ter diante da vida e de seu fim: "Não posso fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado; recebi muito e dei algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Tive uma relação com o mundo, a relação especial de escritores e leitores."

Segue o link para quem quiser lê-la na íntegra:http://www.papodehomem.com.br/oliver-sacks-diante-da-morte/
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*Renata possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (1998), especialização em psicopedagogia(2004) e mestrado em Educação pela UFC (2004). Atualmente é doutoranda em Educação Brasileira na UFC. Tem experiência nas áreas de Educação e de Psicologia, com ênfase em Educação de Surdos, Ensino de linguagem e Psicolinguística, atuando principalmente nos seguintes temas: surdez, leitura e escrita, psicologia do desenvolvimento/aprendizagem, alfabetização e ensino de português para surdos.

Um comentário:

  1. Vou procurar o livro! Lembro que conversamos sobre ele naquele dia e super toparia estudar mais a fundo a questão da surdez. Não desiste desse tema não.

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