sexta-feira, 29 de maio de 2015

Análise, supervisão e desejo do analista: enlaces e desenlaces de uma valsa



O famoso “tripé” da formação do analista: análise (um), supervisão (dois), estudo teórico (tres) talvez seja o ponto pacífico para  a maioria das  entidades psicanalíticas. Desde a IPA até a Escola lacaniana, todos repetem isso que já virou quase um bordão. O problema é que, aprendemos no divã, às vezes aquilo que é repetido resta esquecido por trás do que se diz no que se ouve.  Talvez  seja esse o caso do que acontece com a supervisão, ovelha negra desse tripé, não parece ter despertado tanto interesse, pelo menos no que diz respeito a elaboração desta experiência.
No entanto esse dispositivo tem um lugar de fundamental importância, não só para a formação no que diz respeito ao exercício da clínica, mas também pelo que ela pode apontar do desejo do analista. É por isso que gostaria de parabenizar Elynes pela escolha do tema e agradecer pela oportunidade de pensar um pouco acerca de uma questão que eu experiencio e que ainda faltava escrever.
Minha proposta é tentar ver, a partir da minha experiência, o que posso dizer desse enlaçamento entre Análise, supervisão (poderíamos incluir aqui o estudo teórico) e o desejo do analista. Teríamos aí então um tripé enodado por um quarto termo, desejo do analista.
Quero começar então “sacudindo” um pouco esse tripé. Comecemos pela palavra. Tripé vem do latim tripes, -edis, que tem três pés[1]. É um instrumento utilizado para dar estabilidade a alguma coisa. Aliás, descobri que um outro nome do tripé é “estativa” palavra que tem a mesma raiz etimológica que “estátua”, “status” e que tem sua raiz no verbo “estar”. Essa é realmente a primeira imagem que nos ocorre. Mas, eu queria relembrar aqui, na apresentação de Ercília sobre a supervisão, achei muito propícia uma fala de Osvaldo, quando ele disse que esse tripé não pode ser estático, “estativa”, como o tripé de uma maquina fotográfica. Mas a língua nos ajuda a sair do impasse pois não temos somente o pé do tripé, temos o “pé-de-vento”, o “pé-de-valsa”, o “pé-de-planta” e até o “peito-do-pé”. 
Então, é preciso, como disse Osvaldo,  pensar três "pés" que dançam, bailam, se encontram e se afetam:  Um, dois, tres ... um, dois, tres... (pensem na contagem do tempo na valsa!)


É sobre isso que eu queria falar, porque a minha hipótese é de que é o desejo do analista que permite essa dança, impedindo que se congele feito estátua, os três pés no chão.
Porque pensei isso? Porque em primeiro lugar, o desejo do analista é algo que permeia os dispositivos da formação. Depois, porque, para Lacan, o desejo do analista é algo que só pode manter-se de pé ao final de uma análise. É quando o sujeito, até então analisante, experimenta, em ato, o vazio do circuito pulsional do qual se fez, como objeto, o fecho. Ao extrair o gozo que tamponava esse vazio, o sujeito pode se reconhecer aí desvelando a verdade mentirosa que encobria o seu desejo e justificava como uma espécie de álibi a sua impotência em sustentá-lo. É esta operação que vai permitir consentir com o desejo do analista.
Mas, é fato da experiência, os sujeitos na maioria das vezes, não esperam o final da análise para começar a sustentar uma clínica. As vezes entra-se nisso completamente inadvertido, às vezes tem-se um pequenos vislumbre do que mais tarde vai permitir sustentar essa prática, mas isso ainda é tênue. Por outro lado, uma vez tendo essa clínica iniciado, ela convocará o desejo, os encontros com o real, todo mundo que começa a atender em algum momento se dá conta disso. 
E aí, quando o desejo do analista ainda não pode ser sustentado, o que responde é a angústia. Não se fala muito da angústia do lado do analista praticante[2], mas Lacan fala dela no seminário 10: “Mas, quando o analista inicia sua prática, não é impossível, graças a Deus, que, por mais que se apresente uma ótima disposição para ser analista, ele sinta, desde sua primeiras relações com o doente no divã, uma certa angústia.” (p.13) Vejam que Lacan, chistosamente, dá graças a deus por essa angústia. Acredito que seja pelo fato de que angústia e desejo são topologicamente congêneres. Então, a presença da angustia do lado do analista praticante é, antes de tudo, um guia que lhe permitirá explorar oa veredas do seu desejo, na análise: Um, dois tres...um dois, tres..

Dito isto, vou me deter agora sobre o lugar da supervisão nesse processo, examinando-o a partir de duas vertentes:
a)     a vertente dos enlaces e desenlaces da supervisão com a clínica do analista praticante.
b)    a vertente dos enlaces e desenlaces da supervisão para a análise do analista praticante.
A primeira vertente é a mais óbvia. Não é por acaso que Freud ressalta a importância do dispositivo da supervisão ao diferenciar a formação do analista do ensino universitário ao afirmar em “Sobre o ensino da psicanálise na universidade (1918) que “No que diz respeito à experiência prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal, pode consegui-la ao levar a cabo os tratamentos, uma vez que consiga supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos.” Se tomamos a questão através do conceito de “desejo do analista” entendemos que a supervisão surge nesse tripé como o lugar onde esse operador necessário vai poder se colocar (considerando que o supervisor é um analista que já chegou na sua análise ao ponto de poder sustentá-lo)  enquanto a análise do analista praticante ainda não o permite fazê-lo. Na minha experiência isso foi fundamental, principalmente depois que pude fazer da supervisão uma regularidade, não formal, mas necessária, para o refinamento do caso. A questão que descobri aqui, não é tanto a de alguém que sabe e vai te dizer o “como fazer”. Mas é a oportunidade que é a supervisão de poder, ao falar a um outro, elaborar os pontos do caso a partir desse vazio que o desejo do analista sustenta.  É curioso o que leva alguém a pedir supervisão e o que vai permitir a esta instauração momentânea do sujeito suposto saber operar. Não vou discorrer sobre isso aqui, mas posso afirma que isso só vai ser possível a partir da análise do “analista praticante”, até porque, dependendo da fantasia desse sujeito e do ponto em que ela foi ou não tocada em sua análise, os comentários do supervisor podem até ser tomados como crítica ou desaprovação e aí não consegue provocar muito mais do que angústia. Que também é necessária, já vimos, pois ela, por sua vez, vai remeter o supervisionando (analista –praticante) à sua análise, guiando assim os passos que ele vai trilhar: Um, dois, tres... um, dois, tres..

Mas é quanto a segunda vertente desses enlaces que eu mais me surpreendi e queria agora compartilhar com vocês. Queria dar aqui dois exemplos de como a supervisão se enlaça com o tempo da análise e remete a ela:
a)    um analista praticante assiste a um seminário teórico sobre a histeria. Ao final, resolve pedir supervisão ao ensinante que ministrava o seminário. Sua questão sobre o caso era acerca do diagnóstico: há dois anos escutando essa pessoa e a questão do pai não se colocava. Seu lugar no caso era uma incógnita já que não surgia espontaneamente e, mesmo quando perguntada, as respostas pareciam evasivas. Seria então uma psicose? O analista praticante relata o caso, a partir do que ouviu, claro, e coloca essa questão diagnóstica. Primeira pergunta do supervisor: “porque você achou que eu podia lhe ajudar com esse caso?” A resposta foi: porque eu achei interessante as coisas que você falou sobre o lugar do pai na histeria. A resposta do supervisor veio em ato: “então você já se respondeu a sua pergunta quando pensou em me procurar: trata-se de uma histeria. Se o pai não aparece é porque ele está deliberadamente escondido para que ele possa ser salvo. Procure isso.” Um tempo depois, na análise, foi possível perceber como essa intervenção apontava para algo do ato do analista, sustentado por seu desejo, embora ainda não sabido, naquele momento pelo analista praticante: Um, dois, tres.. um dois, tres...

b)    Um analista praticante manda uma mensagem para marcar uma supervisão. Ao escrever, faz um lapso: me avise quando estiver “porta”, ao invés de “me avise quando estiver “pronta”. A supervisora chistosamente responde: “já abri a porta!”. O que vai se desenrolar nessa supervisão não vem ao caso contar aqui, mas posso dizer que, no material que compôs esta supervisão, algumas palavras do supervisor tiveram um efeito ao apontar exatamente para o que impedia o desenganchar de um impasse na análise, abrindo a "porta", literalmente. Mais uma vez, é o trabalho da análise que permite ao sujeito poder atravessá-la:  Um, dois, tres.. um, dois, tres... e o desejo do analista como quarto nó, enlaçando essa valsa!

  
ps: ao final da apresentação deste texto no Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza, a colega e coordenadora da atividade, Elynes Barros, nos brindou com uma música de Chico Buarque de Holanda (indefectível, viu Osvaldo Martins? rs) que remete à nossas discussão. Deixo aqui a letra/poema da música e compartilho também o video:

Tem Mais Samba
(Chico Buarque)

Tem mais samba no encontro que na espera
Tem mais samba a maldade que a ferida
Tem mais samba no porto que na vela
Tem mais samba o perdão que a despedida
Tem mais samba nas mãos do que nos olhos
Tem mais samba no chão do que na lua
Tem mais samba no homem que trabalha
Tem mais samba no som que vem da rua
Tem mais samba no peito de quem chora
Tem mais samba no pranto de quem vê
Que o bom samba não tem lugar nem hora
O coração de fora
Samba sem querer
Vem que passa
Teu sofrer
Se todo mundo sambasse
Seria tão fácil viver










[1]"tripe", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/tripe [consultado em 26-05-2015].

[2] Usarei aqui a designcação “analista praticante” para aquele que, ainda engajado em sua análise, aventura-se a autorizar-se numa prática clínica.

4 comentários:

  1. belíssimo texto. sua escrita foi muito bem articulada, parabéns!

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  2. Esses encontros sobre supervisão no Espaço Escola estão rendendo muita coisa boa. Fico cada vez mais curiosa... E sim, achei genial essa sacada com o lance da dança!

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