domingo, 8 de abril de 2018

A Fotografia do Golpe



“Menina, não se atreva a falar de Deus aqui dentro. Se Deus existisse ele não deixaria a gente fazer isso com você.” (M. de Sade)

Poderíamos contar os últimos dias apenas por imagens e, certamente, elas servirão muito àqueles que se dedicarem a escrever a história do golpe político que o Brasil vem sofrendo vivendo desde agosto de 2016 e que hoje se concretiza com o ex-presidente Lula transformado em preso político na “República de Curitiba”. Mas talvez poucas delas sejam tão capazes de sintetizar a “moral” subjacente ao que veio sendo gestado em nosso país como a de Oscar Maroni vestido de prisioneiro exibindo a genitália de uma prostituta semidesnuda, calcinhas arreadas nos joelhos, diante de uma turba convidada para comemorar a prisão de Lula. Para quem não sabe, Oscar é um cafetão famoso no mundo da pornografia e dono da casa Bahama que a imprensa chamou de “centro hedonista”, tucanando definitivamente o “puteiro”. Ele também ficou conhecido por ser preso diversas vezes por formação de quadrilha, exploração e prostituição. Atrás de Maroni e o corpo exposto da mulher, perfilam-se, entre homenageados e abençoadores da cena, os rostos do paladino da justiça, juiz Sergio Moro, e da ilustríssima ministra do Supremo (com tudo) Tribunal Federal, Senhora Carmen Lucia. A festa é o cumprimento de uma promessa feita em 2016. Num vídeo que pode facilmente ser acessado na internet, Maroni promete cerveja, caso Lula seja preso, no seguinte diálogo: 

"Se o Lula for preso, a cerveja é de graça até a meia noite. Agora, se matarem ele na prisão, a cerveja vai ser de graça durante o mês inteiro". Outro homem que está numa mesa junto ao empresário questiona caso a morte seja com crueldade. "E se for sofrida, a morte?". Ao que Maroni responde em tom jocoso: "Aí eu dou meu rabo".
Impossível ver a cena e não ser lançado imediatamente na imageria de “Os 120 Dias de Sodoma” do famoso Marquês de Sade. Na obra um padre, um financista, um juiz e um nobre francês reúnem-se no castelo de Silling, para por em prática as mais inomináveis práticas sexuais junto à jovens meninas e meninos arrancados de suas famílias, acompanhados de um grupo de pessoas compostos por prostitutas, homens viris e velhas feiticeiras. Numa das cenas mais famosas, uma jovem garotinha implora por clemência em nome de Deus e ouve a frase da nossa epígrafe.
Tanto a frase como a metáfora do livro são muito inspiradoras nesse momento porque nos permitem deslindar a montagem perversa que age como plano de fundo do golpe. Tentarei pincelar aqui algumas de suas coordenadas.
A ideia de Deus, da moral pequeno burguesa, da família e dos bons costumes sempre foi usada para trazer à tona nossos medos mais secretos. Medo de algo que não conseguimos nomear, mas que insiste a partir de dentro e do qual não podemos fugir. Esse medo, em última instância, podemos reduzir ao nosso próprio corpo, mas que facilmente toma a forma do outro a quem julgamos dever extirpar. Um outro ameaçador, que com seu gozo obscuro põe em risco nossas conquistas. Foi assim em 64, tem sido assim nos últimos tempos (considerando apenas que agora temos essa figura pouco convencional do ator pornô que milita na defesa dessa moral).
O Outro, desde priscas eras, tem um nome no Brasil: o comunista. Ele mata pessoas, come criancinhas, é ateu, não respeita a família nem a...propriedade. É aí que chegamos a verdade desse discurso. A manipulação do medo como a experimentamos não está a serviço de outra coisa que a manutenção de uma ordem financeira. O deputado que votou pelo impeachment de Dilma em nome de Deus e da família não dá a mínima para esses valores. Foram todos comemorar a vitória no prostíbulo, como foi divulgado na época.
Estavam todos, sim, a serviço do dinheiro que corria solto nas propinas e que foi cortado pela presidenta deposta. Dinheiro que corre a serviço da norme – mâle, como diz Lacan, fazendo um jogo significante entre “normal” e “norma macho” que aponta para o lugar do falo na regulação do gozo em sua tradução significante. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a norma fálica não se pauta na potência do órgão masculino, mas justamente em sua insuficiência em saturar o desejo humano. Não estamos mais sob o primado do instinto que programa o macho para a fêmea e vice-versa. Somos regidos pela pulsão que, em sua premência incessante, não conhece objeto que a satisfaça completamente. A norma fálica inscreve para o neurótico essa falta na cadeia simbólica e faz com que passemos a perseguir o ponto que localizamos como resposta ao enigma norteador do desejo. Alguns colocam aí o dinheiro, o amor, o trabalho. Mas de todo modo ela faz parecer menos louco o fato de estarmos todos correndo atrás de algo. A norma fálica também estrutura a fantasia do neurótico como aquele cenário onde haveria um outro que goza plenamente, um gozo que o neurótico desconhece conscientemente, mas com o qual mantém um jogo de aproxima e afasta repetitivo.
No entanto, a norma fálica não faz só o neurótico. Ela também se inscreve de algum modo para o perverso. Só que este, ao contrário do primeiro, não se localiza no polo faltante dessa fantasia. O perverso “sabe” do gozo do outro e é como seu agente que ele se coloca. Ele põe em cena para o neurótico o objeto que supõe ser causa de sua divisão e de sua angústia.
Para além da fantasia, seja ela neurótica ou perversa, nem todo gozo se se deixa dizer pela norma fálica. Trata-se, como elaborou Lacan, do gozo feminino que, em ser não-todo fálico, aponta para o que extravasa essa lógica do ter e para o que não se deixa amoedar no discurso. Por isso, se por um lado a mulher pode ser tomada por um homem como objeto causa de seu desejo e lugar onde este vai recortar o objeto para gozar com ele no encontro sexuado, por outro lado, o gozo propriamente feminino encarna tudo aquilo que se coloca como alteridade radical, inclusive para ela mesma.   
Voltemos para a cena sadeana de Maroni e sua relação com o golpe. Ela encarna o gozo obsceno que deveria permanecer velado em todo o discurso que sustenta essa trama. O golpe está a serviço da manutenção de uma ordem perversa que não aceita a falta. Que não admite tocar na distribuição de renda, não admite pobre viajando de avião, nem porteiro passando férias em Miami. Não admite “analfabeto” presidente. Mais ainda, não admite mulher governando! Se há um lugar para a mulher na lógica do golpe esse só pode ser o de objeto de exploração (bem diferente do objeto causa do desejo) como pedaço de carne, olhos vendados e genitália exposta ao espetáculo dado aos homens que votam em nome de Deus, da família...e da propriedade. É a lógica que matou Marielle, que depôs Dilma e que quer ver Lula morto.  É assim que, em nome de Deus, os homens de bem localizam uma Lei para corrompê-la, com os mesmos significantes que usam para encobrir seu golpe. É assim que temos pedófilos votando leis anti-pedofilia, estupradores votando leis anti-aborto, traficantes votando leis anti-drogas, assassinos votando pela pena de morte e corruptos votando leis anti-corrupção.
Por isso tudo, podemos dizer que o golpe é machista, é racista, é fascista. Por isso tudo, a única chance de resistirmos é se aprendermos de algum modo a somar forças diante dele e não cedermos ante a sedução do narcisismo das pequenas diferenças. A meu ver o discurso, já histórico, do presidente Lula, ao desapegar-se da sua persona e colocar-se a serviço da militância (mesmo sabendo que corre o risco de não sair vivo dessa prisão), deixa algumas dicas nesse sentido:
“não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia. Uma ideia misturada com a ideia de vocês.”
Que suas palavras lançadas aos que partilham de algum modo dos ideais da esquerda possam ser capazes de superar e produzir algo em sentido divergente da (obs)cena de seus inimigos.