A
vida nem sempre entra suave. Algumas vezes vem em golfadas, jorros engolidos,
vomitados. Com as palavras tentamos costurar algo que minimamente filtre e
desacelere essas invasões. Mas sempre escapa muito ou pouco desse impossível
que, por sua vez, se diz no corpo.
Angústia ou despedaçamento, se diz no corpo. Acabo de assistir Loki (2008)
documentário sobre a vida e obra do músico Arnaldo Baptista. Sempre gostei de Mutantes,
mas confesso que nunca soube muito da história desse integrante da banda. Pra mim ele era só mais um
dos Mutantes que um dia desapareceram, ficando a Rita Lee. Mas o que me fez querer escrever não foi o
artista. Muito rico, de uma criação profícua, diga-se de passagem. O que me
envolveu no documentário foi a odisseia de um sujeito em busca de um lugar para
poder existir.
Uns
garotos de 17 ou 18 anos, vivem uma ascensão intensa nos loucos anos 60.
Fazendo um som que muitos nem entendiam, misturando rock, bossa nova e muito
improviso. Um sucesso estupendo, no Brasil da ditadura e fora dele. Um dia
seriam comparados aos Beatles e admirado por gente do nível musical de Kurt
Cobain e Sean Lenon. Assim como os garotos de Liverpool eles também conhecem os
poderes do LSD. Muitos voltaram da viagem, Arnaldo não.
Fim
da banda, fim do casamento com a mulher que lhe dava alguma estrutura. Rita era
para Arnaldo o que Nora era para Joyce, o que Gala era para Dali. A mulher,
que por algum tempo funcionou como amarração. Mas quando ela começa a querer,
a desejar, isso se torna incompreensível para ele: “É difícil falar alguma coisa
que seja compreensível para as pessoas que tenham algum sentimento pela Rita
Lee, mas as pessoas a veem pelo lado do palco, dos holofotes e eu a via pelo
lado LetItBed[1].
Então, nesse sentido, teve uma certa razão de ser do lado dela ter me
abandonado. Mas acho que foi tudo uma questão de cansaço. E tudo isso depende de um gosto, e eu tinha
um gosto que eu num conseguia expressar pra ela né? Talvez por falta de
experiência, porque ela era a minha primeira, então não tinha muito relacionamento
com outros seres femininos, né? Então pra mim era um pouco misterioso o que eu
conhecia de mulher, não tinha irmãs.. Então foi a mamãe e num passou disso.
Depois foi a Rita Lee e com as coisas que vieram.”
O
mistério da mulher (que não é a mãe) se abre e abre de forma hemorrágica a invasão da vida. O
mundo vinha em golfadas, mas não dessa forma filtrada que a linguagem permite.
Nas palavras dele mesmo: “eu me sinto completamente esburacado. É como se
pessoas tivessem dançando e passando por todos os meus poros”. Sem a rede de
proteção simbólica o mundo é pura invasão, e o corpo é carne viva.
Internado
diversas vezes e rotulado pela mídia como louco, o artista foi relegado ao
ostracismo absoluto. Em mais uma de suas crises, ele é levado pela quinta vez
ao hospital psiquiátrico. Durante uma tentativa de contê-lo em uma camisa de
força, cansado de falar com os médicos, se sentindo perdido na vida e Arnaldo
pensa: “Eu vou me ver livre! Escapa e se joga do quarto andar de uma das
janelas do hospital.
Os
danos cerebrais foram graves e ele entrou em coma. Ninguém esperava por uma
possibilidade de recuperação. Na verdade todos se afastaram. Todos, menos uma
mulher, uma fã, que passou a visita-lo todos os dias na UTI e nunca mais foi
embora. Mais uma vez, uma mulher. Sem reducionismos maniqueístas entre aquela
que o abandonou e aquela que o salvou. Não há aqui uma bruxa e uma santa. A
primeira achou que não dava mais e seguiu seu caminho. A segunda renunciou a
ser mulher e fez do ato de cuidar desse homem em coma, a sua sina. Como ela
mesmo afirma, envolvida em um amor que vai muito além daquele entre um homem e
uma mulher, um amor de mãe, ela diz. Para
algumas mulheres essa é uma saída viável: fazer de um homem o seu sentido. Seja
como for, os cuidados dessa mulher foram fundamentais para permitir a
construção de uma nova vida. Ela não só o admirou, o amou e o incentivou a
criar, como deu a ele o mínimo de um laço social exigido para que ele não
caísse no perverso esquema de seguidas re-internações psiquiátricas.
Em
certo ponto do documentário ele fala desse insuportável de um mundo construído
na equivocidade significante, onde você fala "x" e as pessoas entendem "y", e sonha
com um mundo onde "x" só queira dizer "x" mesmo. Mal sabe ele que a riqueza de sua
obra reside na possibilidade mesma de que “x” possa significar um alfabeto
inteiro. É isso que dói, é isso que cria.
Me
parece que um dia ele conseguiu minimamente fixar esse “x” da questão e
construir uma amarração que lhe permite existir sem tanta invasão. Parte disso,
cabe a Lucinha, a sua menina como ele chama; A mulher, com A maiúsculo. A outra
parte parece vir de um uso singular que ele mesmo fez do significante
Loki/Louco. Se no auge da sua agonia ele cantava:
“Cê tá pensando que eu sou
loki, bicho?
Sou malandro velho
Não tenho nada com isso”
Hoje ele soube no palco e
canta a balada do louco, assumindo esse lugar reservado a ele pelo Outro
social, mas fazendo disso o seu elogio a loucura:
“Dizem que sou louco, por eu
ser assim
Mas louco é quem me diz, que
não é feliz. Eu sou feliz.”
Não acredito muito nessa
felicidade inerente à loucura que a poesia desse outro Maluco Beleza exalta. Mas
desse lugar de louco ele encontra algum reconhecimento e consegue encontrar um
lugar onde existir é possível. Não na loucura medicalizada da psiquiatria, mas
na loucura que desde os tempos mais remotos fala pela boca de poetas, sábios e
filósofos. De lá ele pode produzir sua obra. A nós fica a felicidade de ouvi-lo.
[1] Nome de um dos discos de Arnaldo Baptista que, segundo ele, já existia 14 anos antes mesmo do disco ser gravado. Aqui aparece como
um neologismo para descrever sua relação com Rita.