Com uma palavra, o que esse filme provoca no espectador? Angústia?
Medo? Excitação? Parece que Ballard e Cronenberg se reúnem em Crash para lidar
exatamente com esse misto de excitação e angústia.
O filme é inspirado no livro homônimo escrito por J.G.
Ballard. O escritor nasceu em 1930, em Xangai, China, onde seu pai era
empresário. Depois do ataque a Peal Harbor, Ballard e sua família foram
colocados em um campo de concentração para civis. Retornaram à Inglaterra em
1946. Ballard passou dois anos em Cambridge, estudando medicina e trabalhou
como redator de propaganda e porteiro antes de ir para o Canadá, com a RAF -
Republican Air Force. Em 1956, seu primeiro conto foi publicado e Ballard
começou a trabalhar como editor de uma publicação científica, onde permaneceu
até 1961.
O autor sabe que está escrevendo para uma sociedade datada,
aquela do século XX. Na introdução ao livro ele diz:
“O casamento entre a
razão e o pesadelo, que tem dominado o século 20, deu origem a um mundo que é
cada vez mais ambíguo. Pelo cenário das comunicações movem-se os espectros de
tecnologias sinistras e os sonhos que o dinheiro pode comprar. Sistemas de
armas termonucleares e comerciais de bebidas coexistem em um ofuscante reino
governado pela publicidade e pelos pseudo-eventos, pela ciência e pela
pornografia. Nossas vidas são presididas pelos grandes e geminados leitmotifs
do século 20 sexo e paranóia. (...) Assim como o passado, em termos sociais e
psicológicos, tornou-se uma vítima de Hiroshima e da era nuclear (quase que por
definição um período no qual somos todos forçados a pensar prospectivamente), o
futuro também está deixando de existir, devorado por um presente que é todo
voracidade. Anexamos o futuro ao nosso próprio presente, como mais uma simples
alternativa entre as múltiplas que se abrem para nós. As opções multiplicam-se
ao nosso redor, vivemos em um mundo quase infantil no qual qualquer demanda,
qualquer possibilidade, seja por estilos de vida, viagens, papéis sexuais e
identidades, pode ser instantaneamente satisfeita. Vivemos em um mundo
governado por ficções de toda espécie o merchandising de massa, a publicidade,
a política conduzida como um ramo da propaganda, a tradução instantânea da
ciência e da tecnologia em imagens populares, a crescente mistura e
interpenetração de identidades no reino dos bens de consumo, a apropriação pela
televisão de qualquer resposta imaginativa livre ou original à experiência.
Nossa vida é uma grande novela Para o escritor, em particular, torna-se cada
vez menos necessário inventar o conteúdo fíccional de sua obra. A ficção já
está aí. A tarefa do escritor é inventar a realidade. (...) Em Crash! utilizei
o carro não apenas como uma imagem sexual mas como uma metáfora total para a
vida do homem na sociedade atual. Como tal, o livro tem um papel político
bastante distanciado do seu conteúdo sexual, mas eu ainda gostaria de pensar
que Crash! é o primeiro romance pornográfico baseado na tecnologia. Em certo
sentido, a pornografia é a mais política das formas de ficção, pois tenta
mostrar como nos usamos e nos exploramos mutuamente, da maneira a mais
insistente e implacável possível. Desnecessário dizer que o objetivo final de
Crash! é admoestatório, é um aviso contra um mundo brutal, erótico e ofuscante,
que nos acena, cada vez mais persuasivamente, das margens do cenário
tecnológico.” (Crash! JG Ballard)
O Mundo de Crash é o de hoje, uma ficção científica não
sobre o futuro, mas sobre o hoje.
Como o próprio autor coloca, trata-se de um mundo sem
proibições, onde qualquer demanda parece poder ser satisfeita. E no entanto,
nunca estivemos tão insatisfeitos! Talvez tão insatisfeitos quanto antes..mas
desorientados. Pois se antes podíamos culpar um outro pela proibição (o lema de
68 já dizia: é proibido proibir!, o pai, os governos ditatoriais, a repressão
social, o machismo) hoje, quando tudo
parece possível, não conseguimos entender porque permanecemos insatisfeitos,
sem encontrar o gozo almejado: e ai você gozou? talvez da próxima vez... é a frase que abre e
fecha o filme sustentando uma promessa que, pelo visto, só pode se realizar na
morte.
Crash também não é um filme sobre um outro estranho e
psicopata que vive se esgueirando pelas esquinas a noite enquanto as pessoas de
bem dormem tranquilas em suas casas. Crash é um filme sobre todos nós.
Cronemberg sabe disso. Por isso criou um filme que prende nossa atenção. Quem
nunca se deparou com um situação de horror mas que parece convidar ao olhar? A
felicidade é que o diretor sabe fazer isso com arte. Os programas de televisão
sensacionalistas como “Barra Pesada” também sabem disso. Só não tem a mesma
capacidade artística de Cronenberg. Nossas fantasias, as fantasias dos
neuróticos são perversas. É com isso que o filme joga. Por isso nos prende.
Estamos diante de um filme que fala sobre nós mesmos, aqui e
agora.
Curiosamente, é um homem do século passado que vai nos
ajudar a entender isso. Sigmund Freud inventou a psicanálise numa época em que
a repressão social imperava. As histéricas insatisfeitas pareciam sofrer de
falta de liberdade sexual. A cultura, a civilização, ao exigir a perda de
alguma satisfação pulsional ocasionava o mal-estar. O homem seria guiado pelo
princípio do prazer. Mas logo Freud se deparou com outra coisa. Se o homem se
guia pelo princípio do prazer, o que é que explica a repetição daquilo que
causa exatamente o desprazer?
Existe algo que se situa além do princípio do prazer que nos
guia, foi o que Freud descobriu na experiência com veteranos de guerra,
observando as brincadeiras infantis e, principalmente, na clínica sob o
fenômeno da compulsão à repetição, que faz com que o sujeito repita uma
situação traumática inconsciente. Apesar de conscientemente afirmarmos que
queremos ser felizes, queremos nos livrar do sintoma, abandonar o sofrimento, não é exatamente o “caminho do bem” (como
cantava o mestre Tim Maia) que seguimos. Cada um repete, á sua maneira, algo
que presentifica o horror, o insuportável, o traumático.
No filme essa repetição nos leva a uma série interminável de acidentes, corpos despedaçados, carne dilacerada, fluidos e cavidades expostas... mas o que o diretor deixa entrever (e que Freud tão bem delimitou) é que há algo que se satisfaz nessa repetição. Não se trata mais de prazer nem tampouco de uma antítese do prazer, mas de algo que está além do prazer. Lacan nomeou de "gozo" a esse campo onde uma satisfação que não podemos reconhecer como tal está em jogo.
As vezes é possível
que a pessoa nem se dê conta dessa repetição. Ou até que a atribua à forças
externas ou divinas como o “karma”, “destino”, etc. Mas ao endereçar-se a uma
analista, isso vai ser tomado como algo que se dá na relação do sujeito com seu
inconsciente.
Não no sentido que comumente atribuímos a essa palavra.
No senso comum e em algumas concepções psicológicas, alguém “traumatizado é
alguém que foi vítima de maus-tratos, abusos, violência. Freud de inicio até se
aproximou dessa concepção ao supor a teoria da sedução como causa da histeria.
Mas como excelente clínico que era, logo se deu conta que não se tratava de
algo vivenciado na realidade, mas de uma realidade psíquica.O que está em jogo é que, nós nos constituímos sujeitos a
partir de um “trauma”.
Com Lacan vamos poder dizer que a “violência” em questão é
aquela do encontro da linguagem com o real do corpo. Na vivência de suas
pulsões perverso polimorfas, a criança vai se deparar com um gozo impossível de
ser simbolizado, ao mesmo tempo em que, do lado do Outro (lugar de onde provém
os significantes com os quais tentamos nos dizer) esse encontro corresponde a
descoberta de um furo, da ausência de um significante que pudesse nomear esse
gozo. A descoberta de que o Outro deseja e, ainda mais, que seu desejo é
bastante enigmático para a criança.
Nesse sentido, somos todos “traumatizados”. Ainda bem!
Porque apesar da angústia dessa descoberta, é ela que abre para nós a
possibilidade de sairmos da completa alienação ao Outro e constituirmos a nós
mesmos como desejantes, nesse mesmo lugar onde ao Outro falta algo. A fantasia
vai ser uma tentativa de responder a isso, o sintoma também.
Então, voltando a Freud, o que ele nos diz é que nesse
limite, onde não podemos simbolizar o que se passa, não conseguimos falar disso
como algo que nos ocorreu, nós repetimos, atuando esse traumático nas nossas
relações atuais, sempre que se trata de um investimento libidinal, de um
encontro com o outro como objeto sexual. Como um disco arranhado ficamos dando
voltas nesse “mesmo” tentando encontrar alguma forma de dizê-lo. Portanto, com
ou sem proibição, o que está em jogo é que o sexual coloca em cena alguma coisa
que fracassa. Estamos na dimensão do desejo, sempre desejo de outra coisa,
porque o objeto que poderia satisfazê-lo é desde sempre perdido.
Nos dias de hoje temos uma forma bastante problemática de
lidar com isso. É que o discurso capitalista apresenta esse objeto não como
perdido, mas como ainda não encontrado. É a ciência que, ao se deparar com o
real, com o impossível, nos diz que nós... ainda vamos descobrir a causa.. É o
mercado que se utiliza da propaganda para dizer que, se você não está
satisfeito é porque você ....ainda não comprou o último modelo.
O discurso capitalista não leva em consideração a castração.
Como diz Ballard vivemos em um mundo que nos faz acreditar que qualquer demanda
pode ser instantaneamente satisfeita. Mas isso é uma impostura desse discurso.
Nós não podemos mais satisfazer instantaneamente nenhuma necessidade. Aliás,
nem podemos mais falar em necessidade. Porque estamos inseridos no campo da linguagem
e precisamos dela pra nos relacionarmos com o mundo. Daí que, como ela não pode
dizer tudo, há sempre uma perda incluída na equação, há sempre um fracasso em
jogo. Esse fracasso é também o motor da repetição, encontro programado com o real
impossível de simbolizar que retorna sempre ao mesmo lugar.
Em crash esse fracasso nos é apresentado de saída pela
relação de Ballard e Catherine. Eles são um casal de meia idade com uma relação
já desgastada, que tentam recuperar a excitação através de jogos sexuais. Eles
transam com outras pessoas, desconhecidos (que também não os satisfazem) mas
usam o conteúdo erótico dessas escapadas como motor da relação. Uma relação sustentada
numa promessa de gozar mais.. não agora, mais um dia...da próxima vez...
No livro, Ballard diz:
“Há anos que eu era
capaz de adivinhar os casos de Catherine, quase que poucas horas depois de seu
primeiro encontro sexual, simplesmente percebendo qualquer nova disposição
física ou mental - um súbito interesse em algum vinho de terceira classe, uma
postura diferente em relação à política da aviação civil. Muitas vezes eu podia
descobrir o nome do seu último amante bem antes que ela o revelasse no clímax
de nossos atos sexuais. Este jogo provocante nós precisávamos jogar. Deitados
na cama, nós elaborávamos um encontro amoroso completo, desde o primeiro
bate-papo em uma festa numa companhia aérea até o próprio ato sexual. O clímax
desses jogos era o nome do parceiro ilícito. Retido até o último instante, ele sempre
produzia os mais intensos orgasmos em nós dois. Muitas vezes eu sentia que
esses casos aconteciam meramente para proporcionar a matéria-prima de nossos
jogos sexuais. Essas buscas, entretanto, começaram a tornar todos os nossos
relacionamentos, entre nós mesmos e com outras pessoas, cada vez mais
abstratos. Logo ela se tornou incapaz de alcançar um orgasmo sem a fantasia
elaborada de um ato sexual lésbico com Karen, com seu clitóris sendo lambido,
mamilos tocados e ânus acariciado. Essas descrições pareciam ser uma linguagem
em busca de objetos ou até mesmo, talvez, o início de uma nova sexualidade
divorciada de qualquer expressão física possível.” (Crash! JG Ballard)
O preço a pagar, expulso pela porta da frente com a
liberação sexual máxima: transar com todos que tiver vontade, experimentar os
orgasmos mais incríveis - retorna pela
porta dos fundos sob a forma da criação de uma sexualidade divorciada de
qualquer expressão física possível. Uma sexualidade divorciada do corpo!
Abstrata!
Uma primeira consideração é: porque divorciada do corpo? por
que o corpo implica em castração. O encontro sexual é um encontro entre corpos,
e esses são submetidos a castração. Não só a mulher por conta da ausência de
pênis. O que está em jogo não é o pênis, é o falo. E o falo seria um órgão
potente e ereto o tempo todo. Mas a detumescência faz parte do ato sexual. O
orgasmo é uma pequena morte que exige incorporar de alguma forma a perda. O
fim. Mas por outro lado, só se pode gozar com o corpo. Adélia Prado diz isso da
forma que só os poetas conseguem:
“Sem o corpo a alma de
um homem não goza.
Por isto Cristo sofreu
no corpo a sua paixão,
adoro Cristo na Cruz.
Meu desejo é
atômico,
minha unha é como meu
sexo, meu pé te deseja,
meu nariz, meu espírito – que é o alento de
Deus em mim – te deseja
pra fazer não sei o quê
com você.” (A Terceira Via – Adelia Prado)
Portanto, é preciso colocar o corpo na jogada para poder
gozar. A retirada do corpo leva a uma amplificação da excitação, a um material
que vai servir de conteúdo para os jogos eróticos entre Ballard e Catherine, cuja
consequência é exatamente não levar a satisfação alguma. A inclusão do limite
do corpo, por outro lado, abre espaço para um acesso ao gozo que é solidário da
lei. Uma parcela de gozo.
Além disso, por não estar submetido aos limites da castração,
essa busca por um mais-além leva até as últimas consequências. E, como Crash
deixa muito bem entrever, a consequência ultima é a morte. O casal descobre
isso no encontro com Vauhgn.
Certamente não se trata de diagnosticar personagens, mas
poderíamos aproximar Vauhgn do que seria a posição perversa. Encontramos a
fixidez de um gozo que busca dividir o outro, busca a angústia no outro. Pode
até parecer que o perverso goza mais que o neurótico, já que está sempre
desconhecendo os limites. Mas, pelo contrário, sua vida sexual limita-se a uma
forma monótona e repetitiva. O livro de Ballard começa com a morte de Vaughn. E
sobre esta o autor nos diz:
“Esta primeira morte, entretanto, parecia tímida quando
comparada com outras nas quais Vaughan tomara parte e com aquelas imaginárias
que povoavam sua mente. Tentando esgotar-se, Vaughan concebera um almanaque
aterrorizador de desastres automobilísticos imaginários com ferimentos insanos
- os pulmões de homens idosos perfurados pelas maçanetas das portas, os tórax de
jovens mulheres impalados pela coluna do volante, as faces de belos
adolescentes rasgadas pelos aros de cromo dos faróis. Essas feridas eram, para
ele, as chaves de uma nova sexualidade nascida de uma tecnologia perversa.
Essas imagens pairavam na galeria de sua mente como as peças em exibição no
museu de um matadouro.”
A morte encarna a figura última da castração.
Frente a ela tanto o neurótico quanto o perverso estão em dificuldades. No
entanto, enquanto o neurótico recalca a castração e constrói a fantasia como
forma de velá-la, o perverso a desmente e se oferece como objeto que responderia pelo gozo do outro,
encenando aquilo que ele considera responder pelo gozo do outro. A encenação do
acidente de James Dean e a própria cena da morte de Vauhgn podem ser tomados
nesse sentido.
Quanto a Ballard, me parece que sua posição é
muito mais a de um querer saber sobre a morte.
É a figura do homem morto, que atravessou o
para-brisa e caiu sobre seu banco, que o fascina. Será uma pergunta sobre si
mesmo? Estou vivo ou estou morto? Será a crença de que alguém pode deter um
saber sobre a morte? De qualquer forma, o fato mesmo de se perguntar sobre a
morte já aponta para sua posição de sujeito dividido. “Minha primeira e breve
viagem ao local do acidente despertara novamente o espectro do homem morto e,
mais importante, a percepção da minha própria morte.” O próprio fascínio que
ele desenvolve pela viúva aponta para essa questão com a morte que está sempre
espreitando o obsessivo.
Que outra saída seria possível então frente ao imperativo
superegoico que diz ao sujeito “Goza”? A psicanálise propõe um caminho que vai
a partir do aparelhamento desse gozo com a linguagem, levar o sujeito a poder
incluir a castração como motor do desejo. Como afirma Lacan, não há desejo sem
lei. Aliás, é porque a lei existe que desejamos. A proposta não é a de uma
resignação frente a castração. Mas que, ao cernir os limites de seu próprio
desejo, o sujeito não precise mais devotar a vida ao Outro, seja para velar ou
negar sua castração.
“Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
..... Toda palavra é crueldade”
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
..... Toda palavra é crueldade”
(Fala,
Orides Fontela)
Encontremos então a palavra impiedosa que possa nomear nossa
própria crueldade, advertidos, no entanto, de que nem tudo poderá ser dito!
[1]
Texto
apresentado na discussão do filme de mesmo título, promovida pelo Centro Acadêmico
do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará, na atividade "CINETERAPIA" em 26/04/2013