“Insetos
não me agradam”, Alice explicou, “porque tenho bastante medo deles... pelo
menos dos grandes. Mas posso lhe dizer os nomes de alguns.”
“Claro que
eles atendem pelo nome, não é?” o Mosquito comentou irrefletidamente.
“Nunca
soube que o fizessem.”
“De que
serve eles terem nomes”, disse o Mosquito, “se não atendem por eles?”
“Não
servem de nada para eles”, disse Alice, “mas é útil para as pessoas que lhes
dão nomes, suponho. Senão, para que afinal as coisas têm nome?”
(Alice Através
do Espelho)
É com enorme satisfação que
recebo o convite para falar num encontro histórico que homenageia os 100 anos
de morte de Ferdinand de Saussure, principalmente pela possibilidade de estabelecer
um diálogo com pessoas de um campo diferente do meu. Acredito que isso é sempre
muito rico, pois coloca em jogo uma heterogeneidade que nos permite antever
algo de nossas próprias costas, assim como voltar para o lugar de onde viemos
um pouco mais arejados pelo ar da diferença. Fugimos assim de nos acomodarmos a
um lugar confortável, onde achamos que todos pensam igual, mas que nos lança
nos riscos dos sectarismos fundamentalistas, hoje estão mais vivos que nunca . Agradeço portanto ao Grupo de Estudos
Bakhtinianos do Ceará (GEBACE) e Núcleo Interdisciplinar de Estudos em
Pragmática (NIPRA) na pessoa do professor João Batista Gonçalves.
O lugar de onde venho
falar aqui é o da psicanálise e isso já demarca uma especificidade do que vou
falar e que, por usa, vez, demarca também a especificidade da apropriação que
Lacan faz da linguística sassureana. Várias críticas foram feitas à maneira
completamente subversiva com que Lacan se apropriou da linguística
estruturalista, mas elas só se colocam na medida em que se desconhece que há
uma distinção entre os campos que estão aí em jogo: enquanto que o objeto da
linguística é o dos desdobramentos da linguagem humana, a psicanálise tem por
objeto o inconsciente.
A linguagem que lhe
interessa, portanto, é, nas palavras de Lacan, a linguagem do desejo. E se
Lacan se apropria de alguns fundamentos da linguística, é na medida em que ela
vai fornecer as ferramentas necessárias para empreender o que ele chamou de “retorno
à Freud”. Ocorre que, na época em que Lacan se aproxima da psicanálise, havia
prosperado uma certa leitura da obra freudiana que tendia e enfatizava as
relações do ego com a realidade, resvalando para uma abordagem claramente
adaptativa. Os conceitos mais subversivos apontados por Freud e que fizeram da
psicanálise um campo do saber que rompe com a medicina e com a psicologia
haviam sido completamente desprezados. Assim, o conceito de pulsão, as
elaborações sobre a sexualidade infantil e até o próprio conceito de inconsciente
perdem espaço para discussões acerca dos mecanismos de defesa do ego, da ênfase
na chamada “parte sadia da personalidade” e da intervenção do analista a partir
de seu próprio Eu, considerado mais forte que o do analisando. É contra esse
estado de coisas que Lacan vai se colocar ao tomar a linguística estruturalista
como lente para reler a obra de Freud. Ao final dessa fala pretendo leva-los a
entrever o quão longe essa empreitada o levou, para além dos limites da
estrutura, inclusive.
Intitulei minha fala
nesse evento de “As Aventuras de Lacan com Saussure no País do Inconsciente”.
Inicialmente a inspiração em Carroll veio de maneira despretensiosa, apenas a
partir da associação livre que minha releitura do texto de Freud sobre o
inconsciente foi provocando. No entanto, como toda associação livre não é tão
livre assim, acabei me defrontando com um texto de Lacan intitulado “Homenagem
a Lewis Carroll” e que, vim saber depois, foi transcrito a partir de uma fala
proferida por ele numa intervenção radiofônica transmitida pela France Culture
em 31 de Dezembro de 1966 num programa que marcava a comemoração dos cem anos
de publicação de “Alice no país das Maravilhas”. É curioso também que esse
programa foi reprisado por ocasião dos cem anos de morte de Lewis Carroll, em
1998, não sem que antes tenha sido cortada exatamente a intervenção de Lacan. Pego
essas informações de um texto de autoria de Sophie Marret (2003) onde a mesma
também afirma que os críticos da obra carrolliana até hoje ignoraram
completamente essa intervenção de Lacan sobre o autor, provavelmente por
centrarem sua teses na dimensão dos significados da obra, enquanto que o
psicanalista francês se interessou pelo que havia aí do significante em
articulação com o real impossível.
Sendo assim, achei ainda
mais justificada a referência à Carroll na minha proposta, tendo em vista que
mais uma vez estamos diante de um centenário, dessa vez homenageando aquele que
deu à Lacan a possibilidade de entrever essa dimensão simbólica e reinventar a
psicanálise. Além disso, estamos diante de um público voltado às letras e à
literatura e isso me dá a chance de também homenagear Lacan, reintroduzindo de
alguma maneira esse seu texto “esquecido”.
Freud e Saussure foram
contemporâneos e, embora não haja registros de que tenham entrado em contato
com as teses um do outro, estavam trabalhando em torno de algo que tinha muito
em comum. Ambos situam-se como homens do século XIX, mas com um espírito muito
mais projetado para o século XX. Ambos influenciariam sobremaneira tudo o que
se vai formular sobre o homem no século vindouro. O ponto em comum entre esses
dois homens vai ser, cada um a seu modo, o interesse pela linguagem.
Sigmund Freud inicia
seus trabalhos como neurologista. Mais tarde, em parceria com Josef Breuer, vai
se interessar pelo estudo das manifestações histéricas à partir do método da
hipnose. As pacientes, frequentemente do sexo feminino, apresentavam sintomas
para os quais não se encontravam nenhuma base orgânica. Os médicos vienenses
descobriram que, ao falar sob hipnose de situações traumáticas relacionadas de
alguma forma a seus sintomas, essas pacientes obtinham uma melhora
significativa.
Freud viu aí o nascimento de algo novo para a
medicina, mas não se deu por satisfeito com o novo método de tratamento.
Primeiro, porque a remissão dos sintomas
era temporária. Era como se, ao acordarem, as mulheres não conseguissem
integrar na consciência o que tinham falado sob hipnose. Segundo por que, dizem
as más línguas, Freud era um péssimo hipnotizador. Em meio a essas
dificuldades, ele começa a tentar outras técnicas para fazer a paciente falar
em estado de vigília. Tenta operar a partir da sugestão dizendo coisas como:
“quando eu retirar a mão de sua testa você vai falar sobre..”.
Até que um dia ele encontra
uma paciente “impaciente” que lhe diz: “Cale a boca e me deixe falar!” A
genialidade de Freud foi que ele, não só se calou, como ouviu o que ela tinha a
dizer. Nascia aí a “Taking Cure” ou cura pela fala, que esta paciente definia
como “limpeza da chaminé”.
Pela fala alguma coisa
se limpava, desentupia, caía. A proposta de método adotada por Freud á partir
daí (e adotada pela psicanálise até hoje) foi o que ele chamou de “associação
livre”. O paciente é convidado a dizer
tudo que lhe vier à cabeça naquele momento sem filtro moral ou censura de
qualquer ordem.
Freud chega a apontar
que para um leigo parece até que se trata de uma mágica! Palavras, palavras,
palavras...como diz o personagem shakesperiano, como elas podem ter o poder de
intervir sobre o corpo, varrendo sintomas?
Com Lacan, em seu
diálogo com Saussure e outros autores estruturalistas como Levi-Strauss, encontramos
as bases para ler em Freud uma explicação lógica para o funcionamento do
inconsciente, a formação do sintoma e da incidência da análise sobre este
último, que se afasta de qualquer espécie de magia ou misticismo. Falar incide
sobre o sintoma porque, como formação do inconsciente, este é feito da mesma
materialidade que a fala[2].
Essa materialidade é, para Lacan, aquela do significante:
"Nossa
doutrina do significante está fundada no fato de que o inconsciente tem a
estrutura radical da linguagem, que um material que aí está deve jogar de
acordo com leis que são aquelas descobertas pelo estudo das línguas positivas,
das línguas que são ou que foram efetivamente faladas." (Direção do
tratamento, Écrits, p. 594)
Daí a formulação do seu
famoso aforisma: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Ser
estruturado como uma linguagem quer dizer que o inconsciente não é apenas um
depósito inerte de memórias esquecidas. Trata-se, na verdade, de uma outra
razão, organizada como um sistema, regida por leis próprias que são aquelas do
significante e que tem seu paradigma nos mecanismos da metáfora e da metonímia.
No texto “A instância da
letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud” encontramos explanada a
apropriação que Lacan faz da linguística saussureana, a partir do signo
linguístico. Nesse texto, Lacan rende homenagens ao mestre genebrino, mas sua
homenagem já é quase um assassinato[3],
já que ele atribui à Saussure uma formulação do algoritmo do signo linguístico
que não se encontra, como ele mesmo diz, em nenhuma das diversas aulas do
“Curso de linguística Geral”: “significante sobre significado, correspondendo o
“sobre” à barra que separa às duas etapas.” (Instância da letra, p.500)
Então, se estão
lembrados o signo saussureano é composto inversamente pelo significado (conceito)
sobre o significante (imagem acústica), onde eles se encontram intimamente
unidos e um reclama o outro. Além disso, Saussure atribui ao signo as
características da arbitrariedade e da linearidade. A primeira afirma que a
escolha do significante é imotivada, não tem com o mesmo nenhum laço natural na
realidade. A segunda, a característica da linearidade, afirma que os
significantes se dispõem na linha do tempo, seus elementos se apresentam um
após o outro, formando uma cadeia. Lacan
vai também vai introduzir modificações e variações na maneira de compreender
estes postulados do signo linguístico em Saussure.
Mas então, o que
autoriza o psicanalista a se apropriar da teoria de um autor tão influente como
Saussure, subvertendo-a desta maneira? Será apenas incoerência, anarquismo teórico,
uma espécie de vale-tudo ou um simples descaso pelas formulações do autor?
No meu ponto de vista
não se trata de nada disso. Ocorre que como ressaltamos anteriormente, estamos
adentrando num outro terreno. Enquanto que a linguística estruturalista lida
com as relações humanas no plano da consciência (onde prevalecem o princípio de
realidade, com as regras lógicas que exigem ao pensamento se organizar em torno
de significados), o que vai interessar à Lacan está relacionado à uma outra
cena, aquela que Freud identificou como o inconsciente. Trata-se de dois
registros diferentes, duas “linguagens” que, apesar de operarem com os mesmos
elementos, seguem regras diferentes. Como diz Alice, há toda uma lógica
diferente para além do espelho, onde as coisas mudam de lugar e o Jaberwocky
(ou Pargarávio, como foi traduzido no português), apesar de não ter sentido
algum, produz um efeito de significação:
“Solumbrava, e os lubriciosos touvos
Em
vertigiros persondavam as verdentes;
Trisciturnos
calavam-se os gaiolouvos
E
os porverdidos estriguilavam fientes.”
Efeito este que aponta
para um impossível, ou na fala de Alice: “De todo modo, alguém matou alguma
coisa: isto está claro, pelo menos.”
Entre a linguagem e a
morte, desde Freud temos que considerar que há, de saída, uma divisão
estrutural do sujeito, acarretada pela entrada deste na cultura, ou em termos
lacanianos, pela entrada na linguagem. Este sujeito, não existe desde o momento
em que nascemos. Ele se estrutura
incialmente se alienando ao outro materno, aos seus cuidados, seu toque e
suas palavras.
Antes mesmo de nascer, todos
nós já temos um lugar reservado na linguagem que nos antecede. São histórias
que se contam de geração em geração, o nome que os pais escolhem e os
planejamentos que esses fazem para o futuro filho. Tudo isso nos antecede e
delimita, de certa forma, o mundo no qual iremos chegar. Além disso, chegamos
para esta jornada ainda muito despreparados, desprovidos das ferramentas que
precisamos para sobreviver. Em meio a nossa luta pela sobrevivência, é nesse
outro que vamos buscar os significantes com que nomeamos nossa fome, nossa
sede, nosso medo e... nosso desejo. Sendo assim, podemos afirmar com Lacan, que
nascemos alienados a tudo isto que nos precede, a isto que ele deu o nome de
‘Outro’.
O Outro, com letra maiúscula
diz respeito à linguagem, ao lugar onde existem os significantes dos quais nos
apropriamos para nomear o mundo e as nossas experiências. Escrevemos “Outro”
com letra maiúscula para diferenciar do “outro”, pessoas com as quais nos
relacionamos, são os nosso pares, são aqueles com quem nos identificamos pois
são como nós.
É deste suposto grande Outro
que a criança recebe, desde antes de seu nascimento, o seu nome, o nome das
coisas, o nome do que sente. O bebê que chora não sabe nomear o que sente, quem
nomeia é este Outro, que tudo sabe. Sem essa referência ao Outro da linguagem
seríamos como Alice ao entrar no bosque “onde as coisas não tem nome”:
“Esse
deve ser o bosque disse pensativamente, em que as coisas não tem nomes. O que
vai ser do meu nome quando eu entrar nele?” (p. 199)
O desejo de ter um filho (ou de
qualquer outra coisa que venha nesse lugar), vem antes mesmo desta criança
existir, junto com as expectativas, da escolha do nome, da profissão que a
criança terá, de como ela será criada, são desejos e significantes que dão
forma ao bebê.
Porém, quem quer que tenha
acolhido esta criança em seu desejo, precisa estar voltada também para algo que
se situe além do bebê, apontando que essa relação mãe e filho não basta para
satisfazê-la. Ao apontar para o filho que tem outros interesses, a mãe se situa
também como mulher e, como tal, um ser desejante. A criança percebe que a este
Outro também falta algo, que ele não pode tudo, não vê tudo e não pode nomear
tudo. Nessas idas e vindas o sujeito percebe que a mãe não é completa, que a
ela também faltam coisas que busca alcançar. Esse ponto fraco aparece
justamente porque o Outro também tem que recorrer à linguagem, impossível de
dizer tudo.
Nesse lacuna que se abre,
marcada pela falta no Outro é que o sujeito vai passar a se perguntar sobre o
desejo: o que esse outro quer? E mais, o que ele quer de mim? É frente a esse
pergunta feita ao Outro que o sujeito vai se escrever como resposta.
"Quem é você?",
perguntou a Lagarta.
Não era uma maneira
encorajadora de iniciar uma conversa. Alice retrucou, bastante timidamente:
"Eu - eu não sei muito bem, Senhora, no presente momento - pelo menos eu
sei quem eu era quando levantei esta manhã, mas acho que tenho mudado muitas
vezes desde então.
"O que você quer dizer com
isso?", perguntou a Lagarta severamente. "Explique-se!"
"Eu não posso explicar-me,
eu receio, Senhora", respondeu Alice, "porque eu não sou eu mesma,
vê?"
.
Existem maneiras diversas de
responder a esse encontro com o desejo do Outro e é essa resposta que vai
determinar o modo como esse sujeito vai se estruturar. Na estrutura neurótica
esse encontro é recalcado, com a consequente divisão do sujeito[4].
Segundo Quinet, Freud formula a subjetividade humana em conflito, a divisão do
sujeito entre o que ele quer inconscientemente e o que ele conscientemente não
quer ou ignora que quer. (Quinet, p. 23)
Nesse encontro com a falta no
Outro, emerge algo que não pode ser tolerado pela consciência. O conceito
freudiano de recalque vai se fundamentar na constatação de que, nesse momento,
há uma separação entre a “ideia” e aquilo que a “representa”. Esses são termos
freudianos! Estão publicados num texto de 1915. Se aproximarmos aí ideia,
conceito, significado de um lado e representante, significante, de outro, vemos
ai o quanto ele e Saussure estavam de alguma maneira próximos, embora nem se
conhecessem.
Então, o que que acontece no
recalque? Ocorre a tentativa de impedir que essa ideia insuportável se torne
consciente. Há portanto a instauração de uma barra quase intransponível entre
significante e significado. Daí uma primeira consideração sobre a apropriação
do signo linguístico por Lacan, que é o reforçamento da barra que compõe o
algoritmo saussureano, atribuindo à mesma um caráter de resistência à
significação.
“Dizemos
então que se acha em estado de “inconsciente”, e podemos oferecer boas provas
de que também inconscientemente ela pode produzir efeitos, inclusive aqueles
que afinal atingem a consciência”. (Freud, o Inconsciente, 1915)
Então, o material recalcado,
tornado inconsciente, não é inerte. Ele opera, produzindo efeitos com
características diferentes daquelas que encontramos na consciência. Que
características são essas? Vou retomar aqui um trecho do texto “O
Inconsciente”:
“O
âmago do Ics consiste de representantes
pulsionais, que querem descarregar seu investimento, de impulsos de desejo,
portanto. Esses impulsos pulsionais são coordenados entre si, coexistem sem
influência mútua, não contradizem uns
aos outros. (...)
Nesse
sistema não há negação, não há dúvida
nem graus de certeza. Tudo isso é trazido apenas pelo trabalho da censura
entre Ics e Pcs. A negação é um substituto da repressão em nível
mais alto. No Ics existem apenas conteúdos mais ou menos fortemente
investidos.
Há uma mobilidade bem maior das intensidades de
investimento. Pelo processo de deslocamento uma ideia pode ceder a
outra todo o seu montante de investimento, pelo de condensação pode
acolher todo o investimento de várias outras. Propus enxergar nesses dois
processos indícios do assim chamado processo psíquico primário. (...)
Os
processos do sistema Ics são atemporais,
isto é, não são ordenados temporalmente, não são alterados pela passagem do
tempo, não têm relação nenhuma com o tempo. (...)
Os
processos do Ics tampouco levam
em consideração a realidade. São sujeitos ao princípio do
prazer; seu destino depende apenas de sua intensidade e de cumprirem ou não as
exigências da regulação prazer-desprazer.
Vamos
resumir: ausência de contradição, processo primário (mobilidade dos
investimentos), atemporalidade e substituição da realidade externa
pela psíquica são as características que podemos esperar encontrar nos
processos do sistema Ics.”
Tracemos agora um comparativo
entre as características do inconsciente tal como apresentadas por Freud neste
texto e as modificações introduzidas por Lacan no signo linguístico.
Em primeiro lugar, percebemos
que no plano inconsciente o que temos são representantes pulsionais que querem
descarregar seu investimento, impulsos de desejo, Freud vai dizer. Com Lacan
podemos dizer que estamos no plano da articulação de significantes e a
exigência de satisfação pulsional. Nesse ponto, vou ter que me arriscar a jogar
- de maneira um pouco imprudente - um conceito freudiano fundamental que é o
conceito de pulsão. A pulsão como conceito limite entre o psíquico e o somático
é o que, segundo Freud, se diferencia do instinto dos animais, por ser sempre
parcial e por ser uma força constante em busca de satisfação. Embora nenhum
objeto possa realmente satisfazê-la, no sentido de anulá-la, a pulsão não cessa
de pressionar por satisfação. Então, no recalque, não é pelo fato de pertencer
à dimensão inconsciente, que se resolve a pressão por satisfação de uma ideia
investida libidinalmente. Ela vai continuar buscando formas de se satisfazer.
E, o inconsciente, é uma espécie de “País das Maravilhas” onde todo tipo de
combinação é possível. Por mais absurdo que possa parecer uma lagarta falando,
um sorriso sem gato, um coelho apressado... O absurdo e propriamente o reino do
inconsciente, assim como o demonstram nossos sonhos.
Além disso, no inconsciente,
não se trata de jogos de imagens. Embora os sonhos esteja repletos de formações
imagéticas, é no relato do sonhador, ou seja, na sua articulação linguageira,
que Freud vai buscar o material para a interpretação analítica.
E porque? Porque no
inconsciente a primazia é do significante, tomado em jogos de combinações
malucas de forma a permitir a satisfação pulsional. Daí porque Lacan vai
inverter o algoritmo, colocando o significante acima da barra.
“Você pode observar uma
borboleteiga (butterfly). Suas asas são fatias finas de pão com manteiga, o
corpo é de casca de pão, a cabeça é um torrão de açúcar. “
“E o que ela come?”
“Chá fraco com creme.”
Assim
como em nossos sonhos, elementos podem se combinar criando seres estranhos, a
partir, não de seu significado, um inseto, colorido, que voa, por exemplo, mas
a partir de associações significantes, manteiga, pão, chá, creme.
Dissemos ainda que Lacan também
vai introduzir variações nas características da arbitrariedade e da linearidade
do signo. Então vejamos. Quanto à arbitrariedade, ele radicaliza. Para
Lacan, precisamos nos livrar da ilusão
de que o significante atende à função de representar o significado, ou melhor
dizendo, de que o significante tem que responder por sua existência a título de
uma significação qualquer. Daí sua
afirmação no texto intitulado “A Instância da letra no Inconsciente, ou a razão
desde Freud” que “nenhuma significação se sustenta a não ser pela remissão a
uma outra significação” (p.501). Nesse texto ele toma o exemplo clássico do
algoritmo saussureano onde temos o conceito de árvore com sua respectiva imagem
acústica. Essa não é necessariamente a ideia que criamos ao ouvir o
significante árvore. Basta, como ele diz, plantar essa árvore na locução
“trepar na árvore”, para jogar aí um toque de malícia que deixa entrever a
dimensão do sexual para a qual aponta o inconsciente.
Quanto a linearidade do
significante, Lacan também vai pontuar diferenças em relação à afirmação de
Saussure. Mais uma vez em função da particularidade do inconsciente. Para
Saussure, a característica da linearidade se resume no fato de que os
significantes “são diferentes entre si, limitados, independentes, sem variações.
Ou pronunciamos ‘faca” ou pronunciamos ‘vaca’. Não existe um meio-termo entre
/f/ e /v/, que são, deste modo unidades discretas, isto é, separáveis,
descontínuas.” Essas unidades discretas tem que ser emitidas sucessivamente,
não são co-existentes ou simultâneas. “Ao contrário, são sucessivas e, por
isso, só podemos emitir um fonema de cada vez, em linha, ou melhor,
linearmente” (Carvalho, 2003)
Para Lacan, a
linearidade é necessária a constituição da cadeia do discurso, como afirma
Saussure, no entanto, ela não é suficiente. Certamente ela se impõe na medida
em que o discurso é ordenado no tempo,
“mas
basta escutar a poesia, o que sem dúvida aconteceu com F. De Saussure, para que
nela se faça ouvir uma polifonia e para que todo o discurso revele alinhar-se
nas diversas pautas de uma partitura.”(Lacan, p. 507)
E no inconsciente, uma nota que está numa
linha qualquer da partitura não hesita em salta para outra linha, caso isso
seja conveniente à dança da pulsão. Além disso, a pontuação dessa cadeia significante
vai abrir possibilidades de encadeamentos outras:
“Não
há cadeia significante, com efeito, que não sustente, como que apenso na
pontuação de cada uma de sua unidades, tudo que se articula de contextos
atestados na vertical, por assim dizer, deste ponto” (Lacan).
Quando
um desses significantes consegue transpor a barra, temos aí um efeito de
metáfora ou de metonímia, que vão caracterizar as leis de funcionamento do
inconsciente.
Como afirmamos
anteriormente, Freud já havia identificado que o inconsciente não segue as
mesmas leis que pensamento consciente.
Mas, para além disso, ele descobre que os elementos significantes seguem ali
outras leis, aquelas que ele chamou de condensação e deslocamento. Essas leis
operam para fazer funcionar a possibilidade de investimento pulsional à
despeito da barreira do recalque. É como se os elementos constitutivos das
cadeias inconscientes precisassem se “disfarçar” para se manifestarem. Assim, o
investimento de um significante passa facilmente a outro, seja por assonância,
por ambiguidade ou contiguidade temporal, mas em qualquer um dos casos, sem
nenhuma consideração pelo significado. E como então podemos reconhecer esse
funcionamento do inconsciente? Freud afirma que podemos reconhece-lo em
qualquer uma das chamadas formações do inconsciente: sonhos, chistes, atos
falhos e sintomas.
No sonho, por exemplo,
como a temporalidade não incide, temos o significante funcionando não pelo que
possa significar, mas pelas possibilidades de condensação e deslocamento (ou metáfora
e metonímia, como vai chamar Lacan, apontando para o caráter linguageiro desses
mecanismos). A condensação ou metáfora ocorre quando
“duas
representações dos pensamentos oníricos que tenham algo em comum, algum ponto
de contato, são substituídas no conteúdo do sonho por uma representação
composta, na qual um núcleo relativamente nítido retrata o que elas têm em
comum, enquanto alguns detalhes colaterais indistintos correspondem aos
aspectos em que elas diferem entre si.” (Freud, Interpretação dos sonhos).
É assim que, em um sonho
podemos juntar características de duas pessoas diferentes que formam uma só. Na
conversa de Alice com Humpty-Dumpty temos a fantástica criação das “palavras
valise” que, como o próprio Humpty explica, é quando há dois sentidos embalados
numa palavra só:
“Solumbrava, e os lubriciosos
touvos
Em vertigiros
persondavam as verdentes;
Trisciturnos
calvam-se os gaiolouvos
E
os poverdidos estriguilavam fientes.”
Solumbrava: é aquela
hora em que o sol vai baixando e as sombras se alongam.
Lubriciosos: significa
lúbricos, que é a mesma coisa que escorregadios e operosos, ágeis.
Touvos: são parecidos
com texugos...têm um pouco de lagartos...e lembram muito um saca-rolha.
Vertigiro: é o giro extremamente rápido de uma
verruma.
Persondar é perfurar
prescutando
Verdentes: canteiros em
volta dos relógios de sol
Trisciturno: triste,
taciturno e noturnal (mais uma palavra-valise pra você)
Porverdidos: porcos
verde que perderam caminho de casa.
Estriguilar: é algo
entre estridular, guinchar, cricrilar, estrilar e assobiar, com uma espécie de
espirro no meio.
Claro que quando o
Humpty decifra o sentido de uma palavra-valise, forçando-a a entrar na
diacronia[5],
faz com que ela perca muitos outros que poderiam advir na sincronia[6].
No deslocamento ou
metonímia, o sonho pode tomar um detalhe de uma pessoa (um bigode ou a cor dos
olhos, por exemplo, para remeter à outra). Trata-se do mecanismo que transfere
as intensidades ligadas às representações de uma representação para outra.
Na
conversa de Alice com a Tartaruga Falsa sobre a escola, por exemplo, por
metonímia o nome das disciplinas cursadas se deslocam por outras relações que
se estabelecem com o significante tartaruga:
“Não pude me dar ao luxo de estudar essa
matéria”, disse a tartaruga Falsa com um sorriso “Só fiz o curso regular”
“E como era”, quis saber Alice.
“Lentura e Estrita, é claro, pra começar”
respondeu a Tartaruga Falsa. “E depois os
diferentes ramos da Aritmética: Ambição, Subversão, Desemblezação e
Distração”
“E o que mais tinham que estudar?” Disse
Alice.
“Bem, tínhamos Histeria”, respondeu a
Tartaruga Falsa, contando as matérias nas patas, “Histeria Antiga e moderna,
com Marografia, depois Desdém...” (p. 113 e 114)
No sintoma também
encontramos a metáfora que cifra uma mensagem que não poderia ser dita
claramente tendo em vista que se trata de algo insuportável para a consciência.
Assim, uma parte do corpo pode, na histeria, ser tomada como significante e vir
na cadeia representando algo que não pôde ser colocado em palavras. (punhalada
no coração, ter que engolir isso, não poder se manter em pé). Ou no caso da
Neurose Obsessiva, onde o sintoma se forma a partir de uma ideia o mais
distante possível na ideia recalcada, mas ainda pertencendo a mesma cadeia
associativa.
O que está em jogo nos mecanismos
da formação dos sintomas é uma evitação do desejo, tomado como impossível, pelo
obsessivo, ou como insatisfeito, pela histérica, de qualquer maneira apontando
para uma impotência do neurótico em alcançar o objeto que poderia satisfazê-lo.
Ocorre que o de que se trata no desejo é da própria impossibilidade de
encontrar um objeto que pudesse suturá-lo. O Desejo, desde Freud, é um vetor
que aponta para uma experiência anterior, que só se inscreve como traço de
experiência. O desejo, portanto, é metonímico, é sempre desejo de outra coisa.
Seu objeto, por tanto, é perdido, e o que temos dele é apenas o rastro deixado
pelas inscrições dos significantes. A estrutura, portanto não é completa, ela é
perpassada por um furo, aquele que poderia responder elo desejo.
Voltamos então ao começo
do deste texto, onde dissemos que a linguagem que interessa à Lacan é aquela do
desejo. Ou seja, aquela com que cada sujeito vai tentar se fundar como tal, na
sua relação com o vazio com que se depara na estrutura do Outro, com a
impossibilidade de dizer tudo da linguagem e com o como se introduz para cada
um sua relação com o real, com aquilo que fica fora da linguagem.
Finalmente, para nos
despedirmos de Carroll, podemos nos perguntar sobre que real estava em jogo
quando ele produziu Alice? Lacan nos adverte que não devemos buscar essa
resposta na sua inclinação pela menina impúbere. “Mas na sua obra enquanto
lugar eleito para demonstrar a verdadeira natureza da sublimação na obra de
arte. Recuperação de um certo “objeto”... objeto impossível!
[1] Psicanalista, membro
da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Professora da UECE.
[2]
Há aqui e em outras
partes do texto lacaniano, uma utlização dos termos linguagem, fala e
língua como quase sinônimos que
certamente, não vai passar despercebida a um publico de linguistas. Esse é
inclusive um dos pontos e crítica à apropriação lacaniana desta disciplina. Mas
como não é o foco deste texto fazer as comparações entre as aproximações e
distanciamentos de Lacan com a linguistica saussureana, sugiro a leitura do
texto A abertura
da estrutura: limite da aplicação da linguistica saussuriana à psicanálise de
autoria (Sales, 2008)
[3] Não faço uso aqui do
termo “assassinato” com uma conotação pejorativa, pois estou considerando que,
em psicanálise, o assassinato do pai é a base para a invenção da cultura.
[4]
Na psicose, o
elemento traumático é foracluído, e retorna em forma de alucinações; na
perversão, o sujeito se nega a reconhecer a falta no Outro, embora tenha
registro dela.
[5]
“O eixo das
sucessões, sobre os quais não se pode considerar mais do que uma coisa por
vez, mas onde estão situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas
respectivas transformações."
[6]
“O eixo das simultaneidades, concernente às relações
entre coisas coexistentes, de onde toda intervenção do tempo se exclui”
Após as leituras em Freud e Lacan, aqui, na leitura deste texto, consegui filtrar algumas ideias e me aproximar de algumas articulações. Parabéns pela fluidez, Dra. Lia Carneiro.
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