A
fala é de Bob Harris (Bill Murray), um ator de cinema que está em Tokyo para
fazer um comercial de whisky. O Diretor, japonês, fala umas vinte frases
incompreensíveis para o ocidental, ao que a tradutora retruca: ele disse que
quer que você se vire e olhe para a câmera. Claro que não foi só isso que ele
disse. O resto ficou..lost in translation.
A frase, que dá título a esse filme belo e delicado, não poderia definir
melhor o que se passa (A tradução em português - Encontros e Desencontros - não
foi tão feliz assim).
Bob é um homem de meia idade, que arrasta um casamento
desgastado em seus 25 anos, e com uma cara de quem preferia estar em qualquer
lugar do mundo, menos no Japão. Entre as idas e vindas para a filmagem do
comercial (que lhe exige uma encenação ridícula, mas que paga milhões de
dólares para ele estar ali) Bob se revira no quarto do hotel, assolado pelo jet
lag de 24 hs de diferença de fuso. Não é dito muita coisa, mas quem já passou
uma noite tentando, em vão, dormir, sabe imediatamente do que se trata. Ele
desce pro bar do hotel e lá conhece Charlotte (Scarlett Johanson) - linda, como
só ela consegue ser, mas extremamente entediada. Ela está na cidade acompanhando
o marido fotógrafo. Ele, veio a trabalho. Ela... ainda não está muito certa a que veio.
Aliás, essa é a frase que, repetida em situações diferentes, resume sua
personagem: “I’m not sure”.
Ela não está muito certa do que vai querer beber, de qual é
sua profissão, do está fazendo no mundo, do que é estar casada, do que é estar
consigo mesma. Assim como Bob, ela se arrasta insone entre o quarto e o bar do
hotel. Nessas idas e vindas, eles se encontram. Trocam algumas
palavras, não muitas. Mas parece que compartilham algo, talvez a sensação de
que a vida está passando e eles não fazem ideia de como vieram parar ali.
Tokyo é uma metáfora para este “ali”. Uma metáfora
belíssima, por sinal. Num dos momentos mais poéticos do filme, acompanhamos
Charlotte deslocar-se de trem até Kyoto. Na viagem vemos o Monte Fuji imponente e
ancestral, e a acompanhamos em um passeio num parque, onde seu olhar cruza com uma mulher
ricamente adornada em trajes típicos japoneses, amparada pela mão do marido.
Por um segundo, somos atravessados naquele olhar por todas as perguntas que uma
mulher se faz, sobre si, sobre o amor, sobre a vida.
Assim é a dor e a delícia
de poder usar das palavras. Nunca se diz tudo. Na palavras da
poeta Orides Fontela: “Tudo será difícil de dizer: a palavra real nunca é suave". Mas, apesar desse
impossível, e até por causa dele, eis que uma metáfora se faz e a poesia invade
a cena.
Aquilo que nos chega da experiência, como que invadindo
nosso corpo, precisa ser transcrito em outra língua, traduzido mesmo, disse
Freud em sua famosa carta 52 à Fliess. E nisso que se traduz, alguma coisa
resta sempre “lost in translation”. Irrecuperável, mas presente inexoravelmente
cada vez que tentarmos nos dizer.
Estar sozinha em um país distante é uma forma de
experimentar mais perto esse algo. Em uma experiência recente, fui tomada pela
visão de um quadro que, assim como esse filme, me disse muito sobre o que é
estar tão intimamente acompanhada disso que “Que dá dentro da gente e que não devia/ Que desacata a gente,
que é revelia”. O quadro, de Edward Hooper, se chama “Hotel Room”.
Nele vemos uma mulher sentada na cama de
um hotel qualquer. Ela se despiu, seu chapéu e suas roupas estão jogados sobre
uma cadeira e ela parece cansada demais para desfazer a mala. Nas suas mãos um
papel que ela examina, provavelmente o bilhete do trem que vai pegar no dia
seguinte. Tal qual a Charlotte diante da gueixa da cena do filme, me vi
fascinada por aquela mulher, identificada ao que ali se diz de sua situação de
viajante sozinha, mas, principalmente, identificada ao que não sei dizer de mim que
ela parece também portar. Enfim, seja em NovaYork, em Tokyo, em Madrid ou no interior
do Ceará, tem sempre a possibilidade de encontrarmos com essa estranheza
familiar.
Sofia Copolla teve um grande mérito nesse filme (mais um
entre tantos): não reduziu o desconforto, o tédio, a angústia, a um encontro
onde o amor resolve tudo, como é a promessa do cinema holywoodiano). Charlotte
e Bob se encontram, é fato. Mas isso não elimina a estranheza. Apesar da
sensação implícita de que pela primeira vez na vida conseguem estar com alguém
com quem minimamente conseguem conversar, a promessa de um amor vai se
arrastando. Provavelmente enquanto ele pensa na esposa e nos filhos que deixou
na América, e ela no marido workaholic que não consegue ficar perto dela.
A tensão é constante, mas não há encontro físico. Eles
dormem juntos porque pegam no sono conversando, mas não fazem sexo. E o único
beijo do filme acontece num momento lindo, quando prestes a pegar o avião que
vai levá-lo embora para longe de Charlotte, Bob sussurra algo em seu ouvido,
algo que nós espectadores nunca vamos saber: lost in translation.
Fica a sensação se que algo escapou, algo está
perdido. Mas é isso também que faz toda a beleza do filme e da vida. Não é que
a vida valha a pena, apesar de perdermos. É exatamente porque perdemos que vale
a pena seguir inventando: inventando o amor, a poesia, a vida.
A psicanálise tem outra forma de dizer isso. Nessa mesma
viagem em que encontrei Hooper, tiver a oportunidade de ouvir uma belíssima apresentação
do psicanalista Antonio Quinet onde ele disse da estrangeiridade de todos nós
em relação ao inconsciente, que é sempre translinguístico. Isso é, apesar da ilusão
de que “é falando que a gente se entende”, estamos todos - mesmo quem nunca
saiu do seu lugar natal - sempre tendo que nos virar com uma língua estrangeira.
E que a tarefa do analista consiste em arrancar as palavras de sua
familiaridade, permitindo que, por um lado, o sujeito se descole de suas
identificações, e por outro, que aquilo que cai “lost in translation” compareça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário