O aguardado documentário
sobre a vida de Nina Simone, uma das maiores vozes do século XX, não
desapontou. A diretora Liz Garbus soube compor um mosaico sobre a vida e obra
da cantora que passa longe de uma simples exaltação. A pergunta título já deixa
entrever o que vamos encontrar ali: uma história demasiado humana e que, por
isso mesmo, nos cativa.
What happened, miss Simone?
Poderia ser respondia de diversas maneiras: pelo viés político, artístico,
histórico. Mas, sem deixar de lado a importância de nenhuma dessas facetas, foi
a mulher que encontrei ali que me tomou. Logo nas primeiras cenas, temos uma
Nina que sobre ao palco em Montreux com um olhar ausente, perdida em meio aos
aplausos que chovem. Talvez ela mesmo se pergunte neste momento: what happened?
Nascida Eunice Waymon, em
meio a segregação racial da Carolina do Norte,
se encantou por
Bach na década de 40 e traçou uma carreira de sucesso
que a levaria ao Carnegie Hall. Apesar da paixão pelo piano clássico, foi como
cantora de jazz e blues que se revelou ao mundo. Tocar e cantar nos bares
tornou-se a única alternativa para a filha de uma empregada doméstica com um
marceneiro. Foi essa vicissitude do destino quem deu ao mundo o prazer de
conhecer a voz robusta e aveludada de Nina (menina, como era chamada por um
namorado) Simone (em homenagem a atriz Simone Signoret).
Bebedouros separam brancos e negros nos anos 50 |
A composição escolhida para
se re-nomear revela um ideal : a menina,
branca, bem-sucedida, sensual e politicamente engajada, encarnada na
atriz francesa com quem compartilha um mesmo sonho de liberdade. O encontro com
seu grande amor, Andy, talvez tenha sido o primeiro descobrimento dessa imagem
(todo amor, afinal, não é ao mesmo tempo narcísico e objetal?) A menina cai de
amores pelo policial durão, pois ele “sabia o que queria”. Ele a protege,
organiza sua vida, passa a ser seu empresário e lhe dá a segurança de que
precisava para enfrentar o show business. Mas é este mesmo amor que vai
revelar-se em sua face mais cruel, empurrando-a para o trabalho além das forças
e espancando-a quando desobedecia. “Ele
me assustava”, dizia Nina, “mas eu o amava e achava que ele ia mudar”. História
tão conhecida essa, dessas mulheres, brancas, negras, americanas, brasileiras,
que por amor, se deixam (ou se fazem) destruir. What Happened, miss Simone?
Como o sonho de liberdade acabou flertando com os grilhões de uma relação
abusiva?
Uma palavra que ricocheteia
em todo documentário, talvez seja a senha para respondermos à pergunta: anger. Seja uma raiva auto dirigida, nos
momentos de depressão; seja nos ataques no palco, onde exigia a atenção que um
pianista clássico merecia; seja quando dirigia essa raiva para a filha ainda
criança: “minha mãe era movida pela fúria”, afirma Lisa Simone em determinado ponto.
Foi essa mesma “fúria” que a permitiu, depois de muitos anos, separar-se de
Andy, engajar-se no ativismo pelos direitos civis e fazer disso uma causa.
Nessa militância ela usa toda sua raiva em prol do ativismos politico, culminando com "Mississipi, Goddam!". Algo como "Misssissipi, puta que pariu!", música feita após a morte de quatro crianças negras num ataque a uma igreja. Ela disse o que estava engasgado e todo mundo queria dizer. Mas sua raiva levou-a mais longe, chegando a divergir de Luther King quanto ao uso da violência.
“Are you ready black people? Are you ready to
smash white things?”, ouvimos uma Nina quase em transe instigando o público em
um de seus shows. O circuito pulsional faz seu trottoir onde "bater" e "ser batido" são duas faces da mesma moeda. “Strange Fruit” essa que
carregamos no ventre, que vemos com horror (como o poema cantado
por Nina diz),
balançando nas árvores para apodrecer como os cadáveres dos negros linchados em Indiana, mas que também encontramos em nós mesmos como nossa causa mais
íntima. Estranho familiar, diria Freud.
Negros linchados em indiana, origem do poema "Srange Fruits" |
Nina sonhava com a liberdade,
mas quando se desvencilhou das garras de Andy, não soube o que fazer com ela.
Destruiu-se e perdeu tudo que tinha e, quando já era uma lenda, se viu
completamente perdida cantando em bares anônimos de Paris.
Essa história me lembrou uma
outra. A de Ysé, contada por Paul Claudel, e retomada por Colete Soler em seu
livro “O que Lacan dizia das mulheres”.
Frente a iminência da partida de seu amante para a guerra, Ysé lhe
implora que não vá. Ele se vangloria: Então, no fim a gente tem que confessar
que precisa mesmo é do marido! Mas Ysé lhe arranca o pedestal: “Não confie
muito em mim. Não sei, sinto em mim uma tentação... E peço que não me venha
essa tentação, porque não convém... De que precisa uma mulher, senão de
segurança, como a abelha atarefada na colmeia, limpinha e bem fechada? E não
esta liberdade assustadora!”
Diz Colete Soler: “Não era
contra os perigos da China que ela fazia seu apelo, mas contra a coisa mais
próxima. Em síntese, Ysé lhe diz: proteja-me de mim mesma.”
Acho que podemos ler na
história de Nina também um apelo, algo que a defendesse dessa liberdade
assustadora onde, no final do trilho, o que encontramos, são corpos decompostos
balançando numa árvore. Strange Fruits.
O mérito do documentário foi, além de nos proporcionar momentos belíssimos em companhia de Miss Simone, mostrar os diversos ângulos de Nina: da entrega amorosa à fúria odienta, sem
reduzi-la a nenhum deles, mostrando-a susceptível de todas as paixões humanas.
Assim como qualquer um de nós.
Afinal, no one can always be an angel, não é Miss Simone?
Afinal, no one can always be an angel, não é Miss Simone?