(Palestra proferida na Semana de Psicologia da Fanor, 2013)
Quando recebi o convite para falar sobre " O atendimento na clínica contemporânea" pensei em como poderia organizar uma fala. Primeiramente, parti do significado das palavras "contemporâneo"e "clínica".
Contemporâneo - aquilo que é do mesmo tempo em que se fala.
Clínica - do grego Kliné , debruçar-se, atendimento junto ao leito. Em psicanálise, a clínica é o que se dá no encontro com o paicente, espaço de escuta.
Percebi que poderia tomar esse tema por duas vertentes diferentes, a partir de duas perguntas:
- a primeira pergunta é se haveria uma especificidade do como se realiza a clinica na contemporaneidade;
- A segunda, seria do ponto de vista do "com que lidamos" na clinica na contemporaneidade.
Vou me guiar então pela resposta que posso formular a essas duas questões.
Em
primeiro lugar, é preciso destacar que, a clínica a qual me refiro, é a
psicanalítica. E o que é a clinica psicanalítica? É aquela que nasce
com Freud no início do século XX.
É
interessante ressaltar que, antes de Freud, ja havia a clinica. Com
Foucault, no livro o nascimento da clinica, sabemos que a clinica
moderna é a clinica anátomo-patologica, que identifica o sintoma a uma
lesão nos tecidos e se pauta na observação. Esta clinica, pretende
anular tudo que é subjetivo pois considera que esses elementos
interferem na observação da doença que deve ser o mais objetiva
possível.
A
grande invenção freudiana foi ter se interessado por aquilo que não se
encaixava nesse modelo. Por queixas que não apresentava base orgânica,
mas que faziam sofrer as mulheres e lotavam Salpetrière. Ele se
interessou em ouvi-las e ainda atribuiu um sentido ao que elas diziam.
Não, elas não era fingidoras, elas tinham algo a dizer com seu sintoma. A
partir de sua clinica ele desenvolveu as bases teórico metodológicas da
psicanálise que sao, por
uma lado a metapsicologia (nos conceitos de inconsciente, desejo,
pulsão, repetição) e, por outro, a aplicação da regra de ouro que é a
associação livre.
Se
tomarmos por esse viés, não haveria muito o que se falar de uma
"clínica contemporânea", pois a psicanálise não só não se "atualizou"
com o passar do tempo, como poderíamos dizer que essa fidelidade à suas
bases que datam de longo tempo é, na verdade, a garantia de que ainda
possamos chamar de psicanálise aquilo que fazemos.
Mesmo
o grande inovador da psicanálise, que surge no cenário psicanalitico
após a morte de Freud, Jacques Lacan, não cansou de afirmar que sua
proposta não era a de uma "modernização" de Freud, mas a de um retorno
às suas bases que, naquele tempo, ja andavam pra lá de esquecidas.
Lacan
vai apontar que, para que a piscanálise continue merecendo ser assim
chamada, ela precisa preservar a lâmina cortante da verdade freudiana,
que aponta para a realidade sexual do inconsciente e para o impossível
que ela concerne. A política do analista é a política da falta, ele vai
dizer.
Dizer que a política da psicanálise é a política da falta, quer dizer que ali onde haja a pretensão de
dar respostas, de completar, de fazer sentido, a psicanálise deve
comparecer para sustentar o furo, o buraco, constitutivo de todo
discurso.
A
clinica psicanalítica do nosso tempo é, portanto, a boa e velha clinica
de Freud. ele formulou que esse buraco e o mal-estar estar dele
decorrente é constitutivo do ser falante. Formulou ainda que ele existe
devido ao fato de estarmos na civilização - de estarmos na linguagem,
dirá Lacan. A palavra é sempre insuficiente para nomear o mundo, nomear
nossas experiências, nomear nossa angustia. Sobra sempre algum
inominável que vai constituir esse furo. A psicanálise não vai buscar
preencher o furo. Ela se orienta por sustentar aberto o buraco, sabendo
que ele é mal- estar, mas é também constitutivo do sujeito e de seu
desejo. Se, furo, não há desejo!
Essa estrutura é atemporal, portanto, nessa perspectiva, não há uma especificidade de uma clinica do nosso tempo . O que há é a clinica, conforme inventada por Freud.
Esso nos leva, então, à segunda questão: haveria uma contemporaneidade do "com que lidamos" na clinica psicanalítica?
Penso
que ai podemos formular alguma coisa. Embora o "com que lidamos" seja
desde Freud, com o sujeito e seu desejo, as formações do inconsciente e
o gozo da repetição mortífera que se apresenta no sintoma, acredito que
podemos falar de uma contemporaneidade do "envoltório formal" desse
sintoma.
O
mal-estar decorre da civilização. Mas certamente, a civilização não se
estrutura nas mesmas bases que na época de Freud. Só para termos uma
ideia dessas mudanças, em um texto como "A moral civilizada e doença
nervosa moderna" Freud relaciona o adoecimento neurótico à repressão
sexual promovida pela sociedade de seu tempo, com sua moral vitoriana.
As histéricas adoeceriam porque, impedidas de terem relações sexuais,
chegava ao casamento frígidas após anos de repressão, perdendo o caminho
do acesso a sua sexualidade.(Estamos falando de um tempo onde as
mulheres "supostamente" esperavam até os 19, 20 anos para casarem
virgens).
Quem
poderia sustentar uma tese dessas nos dias de hoje? Naquela época,
perder a virgindade antes do casamento era quase uma sentença de
envelhecer sozinha. Hoje em dia, as meninas de 14 anos vem ao
consultório se queixar por ainda serem virgens quando suas colegas já
tem vida sexual ativa. Alias, desde muito antes disso, as crianças ( que
antes se supunha assexuadas) já são instigadas a se vestir como
mulheres, dançar sensualmente, etc. Tudo muito distante da repressão
sexual da época de Freud. pelo contrario, somos cobrados a gozar intensa
e infinitamente. A sentença do nosso tempo é a do supereu: goza!
Sendo
assim, diríamos que estamos menos neuróticos? Nada nos autoriza a fazer
essa afirmação. Pelo contrário. Na clínica nos chega cada vez mais
sujeitos desanimados, enlutados, entristecidos, desiludidos,
desbussolados, desrorientados em relação ao seu desejo... E todos eles
nomeados segundo a ciência, com o rotulo de "depressão". O que estaria
por trás desse fenômeno? Somos todos deprimidos?
A
questão por trás disso é o tal do furo. Na sociedade vitoriana tínhamos
um outro a quem atribuir a interdição do nosso acesso ao gozo. O
discurso da época dizia que não gozávamos suficientemente porque a
igreja impedia, porque a sociedade proibia, porque a estrutura
patriarcal se impunha.
De
lá pra cá, queimamos soutiens, inventamos a pílula, a mulher passou a
ter papel fundamental na renda familiar (embora ainda receba menos que o
homem pelo mesmo trabalho) e os nossos valores se tornaram bem menos
proibitivos, quando não, se esvaíram por completo. E, principalmente,
ciência tomou o lugar da religião como lugar de acesso a verdade.
Ao
contrario do discurso religioso que diz pra suportarmos melhor o buraco
porque vamos ganhar uma vida plena no reino dos céus, a ciência vem
para dizer que não precisamos perder tempo esperando (time is money),
podemos ter uma vida plena aqui mesmo na terra. Podemos eliminar o
sofrimento, o envelhecimento, as doenças e, quiçá, a morte. Basta para
isso encontrarmos o produto certo. Antidepressivos, cirurgias plásticas,
criogenia..isso vai às raias da loucura quando alguém chega a pagar
para ter seu corpo congelado, apostado na descoberta da ressurreição.
O
parceiro feliz desse discurso científico é o discurso capitalista. Ora,
se para ter a vida plena, basta ter acesso ao produto certo, "nós
estamos aqui para garanti-lo!", quase podemos ouvir o slogan dessa
espécie de "Organizações Tabajara" generalizada. Se você se sente
impotente, seus problemas acabaram! compre um carro gigante e tome
viagra. A questão é que os objetos da produção capitalistas que se
apresentam para tamponar o furo, não so não se sustentam nesse lugar,
como, pior ainda, fazem desaparecer o desejo ao tamponar esse buraco.
Saímos da concessionária preenchidos com um carnê de prestaçoes a pagar
com mais trabalho que vamos ter que acumular e..desanimados, se,
entender porque não ficamos tão felizes quanto às pessoas do Facebook!
Outro
exemplo disso, é que certamente avançamos muito com a ciência na cura
das doenças e praticamente dobramos a nossa expectativa de vida. No
entanto, a ameaça que antes vinha do corpo, agora vem das ruas, da
violência sem limites e da drogadição generalizada.
Dai
que Antonio Quinet vai dizer que capitalismo e tecnociência são as
"Torres gêmeas" do mal-estar na civilização contemporânea.
A
psicanálise surge como o avesso desse discurso. Ela esta advertida de
que não gozamos plenamente porque é impossível ao ser falante preencher o
furo. E nem seria desejável que o fizesse, pois seria o seu próprio
desejo que se esvairia.
A
expectativa de encontrar a "metade da laranja" invariavelmente
fracassa, por que aquilo que encontramos no outro não é o pedaço que
faltava para sermos completos.
Mas
se sentir faltando um pedaço dói! O que vamos fazer então?
Resignarmo-nos no sofrimento? E ainda sem a promessa de vida eterna? Me Funai, antes não ter nascido...máxima da tragédia grega?
Não
é essa aposta da psicanálise. A aposta é que podemos encontrar uma
forma de manter o buraco aberto e aprender a fazer algo com ele.. Um
assobio, um poema, um amor...mas sabendo que nada pode, nem deve,
completá-lo.
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