Para além das
determinações sociais, culturais ou de gênero, a psicanálise vai afirmar que, para o ser falante,
tanto a identificação com seu sexo como a escolha de objeto são engendradas a
partir de uma “outra cena”, inconsciente.
Usamos aqui tres
palavras que exigem que falemos um pouco mais sobre elas: identificação,
escolha e objeto. Comecemos com uma pergunta: afinal, podemos falar de
“escolha” no que tange a sexualidade?
“Dizer
que um homem ou uma mulher “escolheu” ser homossexual pode parecer um absurdo,
ainda mais no caso em que tudo que ele/ela preferiria na vida seria ser
heterossexual, ou quando luta contra seus desejos, ou se recrimina por eles e
até tenta se matar para não ter que viver sua pulsão, a qual lhe exige
constante satisfação. (...) No entanto, falar de escolha subjetiva em relação à
sua forma de falar é uma postura ética, que tira o sujeito dito homossexual do
lugar de vítima: de sua genética ou de seu destino ou do desejo de seus pais, o
Outro parental. Falar de escolha sexual implica em fazer o sujeito responsável
por seu gozo.” (Quinet, 2013, p.
131)
Como então podemos
entender essa “escolha” que mal se reconhece como tal? Em primeiro lugar é
preciso situá-la dentro dessa “outra cena” a que nos referimos há pouco. Não se
trata de uma escolha consciente, de uma decisão tomada deliberadamente em um
dado momento cronológico da vida. Trata-se de uma escolha forçada, como diz
Lacan. Para ilustrar essa escolha, ele coloca a seguinte situação: imagine que você que vem andando distraído, portanto uma bolsa com todos
os seus pertences. De repente, surge o ladrão que, com uma arma encostada na
sua cabeça, sentencia: a bolsa ou a vida! Não sei o que você faria, a gente
nunca sabe de antemão como reagiria numa situação dessas, mas pode ter certeza
de uma coisa: a bolsa, você já a perdeu!
Considerando que a opção de correr está fora de cogitação (lembre-se que
o cano está apontado pra sua cabeça, sobram duas opções: a) você escolhe a vida
e entrega a bolsa; b) você escolhe a bolsa,
e ai ele lhe tira a vida. O que no final das contas não vai lhe sobrar muito
pra continuar usufruindo da bolsa.
Pois bem, nossa
constituição psíquica nos coloca em determinado momento frente a uma escolha
desse mesmo tipo, e nos obriga a nos alienar ao Outro da linguagem e com isso
perdemos algo. É preciso dizer que nem todos escolhem essa via, é possível
escolher também a bolsa, não se alienando ao Outro, mas nesse caso as
consequências são tão devastadoras que já não podemos usufruir da bolsa. Mas
não trataremos desse caso aqui. Detenhamo-nos portanto naqueles que escolhem a
vida.
Não nascemos homens ou
mulheres, nem hetero nem homossexuais. (Na verdade, o que Freud descobriu em
sua clínica foi que nascemos com uma predisposição bissexual que só depois vai
se definir). Mas enfim, nós nascemos mesmo é completamente desamparados, sem
recurso algum para lidar com um corpo que vive, ao sabor das pulsões parciais.
Se nós estamos aqui hoje conversando, é porque quando nascemos, algum outro se
dignou a nos tomar em seu desejo e, frente a esse nosso desamparo fundamental,
compareceu.
Freud toma como exemplo
dessa situação o bebezinho recém-nascido que chora e esperneia. Ele sente
coisas, coisas que não sabe ainda nomear. Uma delas é uma sensação de
contrações no estômago que o deixa muito irritado: FOME! O adulto que se
aproxima, geralmente a mãe ou quem ocupa seu lugar, oferece o seio ou a
mamadeira ele então tem aquilo que chamamos de “primeira experiência de
satisfação”. Aquilo é maravilhoso! E ele guarda consigo um traço mnêmico dessa
experiência. Mas o que Freud descobriu foi que, da próxima vez que a fome
bater, ele não vai sair gritando e esperneando pra chamar novamente a mãe. Ele
investe libidinalmente o traço que ficou marcado dessa experiência, o que quer
dizer que ele alucina! Ele tenta por essa via alucinada repetir a experiência
do mesmo objeto da primeira satisfação. Mas ele não encontra, porque o que ele
tem são apenas traços, vestígios desse objeto.
E aí, ele é obrigado a chamar novamente a mãe que novamente comparece
com o seio.
Como diz Quinet (2013, p. 132), “o
sujeito escolhe o Outro do amor como uma
escolha forçada, que constitui sua alienação- menos pior que o desamparo da
ausência do Outro. Trata-se da escolha do Outro do sentido, ou seja, da
linguagem, aquele que dá ao sujeito o apoio do simbólico. Mas para entrar na
sexualidade, ele deve, em seguida, poder separar-se , pois, entre o sujeito e o
Outro, há o objeto a, causa do desejo, que lhe dará a orientação subjetiva e
sexual em sua singularidade. É esse o objeto que o sujeito alojará no parceiro
sexual de sua escolha.” (p. 132)
Após a alienação ao
Outro do amor, a separação. Desse processo restará um vazio deixado pelo objeto
esperado mas não encontrado É nesse lugar que Lacan vai construir seu conceito
de objeto a, objeto que causa o desejo e não objeto de satisfação do desejo.
Dito de outra maneira, nós não temos algo a nossa frente (como quer nos fazer
acreditar o capitalismo) que, ao ser encontrado, responderá pelo nosso desejo.
O que nós temos é um vazio que nos obriga a caminhar pela vida, buscando
substitutos que o preencham.
É na relação que
estabelecemos com esse vazio, ou com esse objeto que vão se organizar duas das
nossas escolhas mais importantes em termos de sexualidade: a escolha da posição
sexuada dentro da partilha dos sexos (posição masculina ou feminina) e a
escolha de objeto sexual.
O discurso religioso ou
até mesmo o discurso da ciência nos levam a crer que existe uma norma natural
que rege isso. Do lado religioso, ouvimos constantemente afirmações como “a
relação entre dois homens não pode ser aceita porque não é natural”. Do lado
científico, as teorias genéticas levam a explicações baseadas nas organizações cromossômicas que cada um
portamos e defende que é isso que define nosso sexo. Daí que tudo aquilo que desvia dessa pretensa
natureza é tido como desvio, pecado ou doença.
Mas o que a psicanálise
descobre é que que, se tem uma coisa que todos nós somos em termos de
sexualidade, é que somos todos desviantes! Perverso polimorfo, foi assim que
Freud chamou a criança, que busca satisfazer suas pulsões por todos os buracos
do corpo: daí a pulsão oral, anal, escópica, invocante... A entrada na norma
fálica tenta recalcar essa sexualidade infantil a serviço dos avanços a
civilização. Mas ocorre que a pulsão persiste, insaciável, exigindo sua
satisfação, ainda que por outras vias desviadas. Daí que a sexualidade do ser
falante, ao contrário do animal, é sempre conflituosa.
É em meio a essa bagunça
da pulsão, por um lado, e as exigências civilizatórias, por outro, que cada um
precisa se posicionar sexualmente e escolher seu objeto. Falemos primeiramente
da escolha da posição sexuada: tornar-se homem ou tornar-se mulher, o que é
isso?
Freud descobriu uma
coisa estranha: a criança pequena desconhece a diferença sexual e atribui um
falo a todos os seres animados...e as vezes até aos inanimados. É o que ele
chamou de “primazia do falo”. Acima de tudo, ela supõe um falo á mãe, que como
ser mais importante na sua escala do universo, deve ter um falo maior que todos
do mundo! Do tamanho do de um cavalo, como diz o famoso pequeno Hans. Na
verdade ela até se identifica a esse falo materno, como aquilo que a
complementa e a realiza. Nesse momento, meninos e meninas tem uma mesma escolha
de objeto: a mãe.
A descoberta de que a
mãe não tem o falo, de que ela não é completa, de que ela deseja, é decisiva para o posicionamento da criança frente a
partilha sexual e aqui muita coisa pode acontecer. Se ela for neurótica, o caso
que estamos abordando aqui, ela vai localizar no pai, aquilo que a mãe deseja,
ou seja, o falo. Foi a isso que Freud tentou explicar com o termo Complexo de
Édipo. O Édipo é uma experiência determinante para que o sujeito possa
separar-se desse lugar de objeto da mãe, definindo seu lugar no mundo e com
isso sua identificação com seu sexo e sua escolha de objeto. Somente aqui as
coisas começam a se diferenciar para meninos e meninas:
a) o
menino será aquele que, ao localizar o falo do lado do pai, passa a se
identificar com ele, aquele que tem o falo, abre mão da mãe como objeto de amor
e passa a procurar uma mulher que a substitua.
b) A
menina será aquela que, localizando o falo do lado do pai, se identifica com
aquela que não tem o falo, a mãe, e passa a esperar receber o falo do pai em
forma de um bebê. Como esse bebe do pai não chega, ela passa a buscá-lo em
outros homens.
Essa é a explicação
freudiana que, apesar de muito importante para entendermos o processo de
sexuação, tem alguns pontos cegos, alguns pontos problemáticos. Principalmente
no que tange a explicar a posição feminina, pois se ela responde pelo que é o
desejo da mãe (um filho) ela deixa intocada a questão do que quer uma mulher.
Lacan vai entrar nessa
conversa apontando que Freud fez avanços importantíssimos nessa área e que
precisavam ser resgatados: a sexualidade infantil, a realidade psíquica, a
lógica inconsciente, o objeto para
sempre perdido... mas que ele se deteve num certo ponto: suas elaborações se
detiveram dentro da lógica fálica, aquela que responde pelo desejo, pela
libido, sempre masculina. Por isso Freud se deteve frente ao que ele chamou de
“continente negro”.
Para poder avançar nos
esquemas freudianos, Lacan recorreu à lógica e esboçou um quadro que situa, de
um lado a lógica toda fálica, masculina. E do outro, o que ele chamou de não –
todo fálico, ou lógica feminina. A escolha do lugar na partilha sexual,
portanto, não depende nem da anatomia, nem das construções sociais, mas do
lugar em que cada um vai se colocar: todo fálico ou não todo fálico.
O lado todo fálico, convencionou-se
chamar lado homem, é totalmente inscrito na lógica fálica. Como afirma Quinet
(2013, p. 136) “o homem se assegura que é homem a partir da apropriação fálica.
Isso porque ele tampouco tem o falo e sua angústia de castração o leva não a
temer perdê-lo (como pênis, o falo imaginário) pois não o tem, mas a arrumar
substitutos, cuja perda, aí sim, significariam sua castração.” Essa lista de
substitutos é infinita e inclui mulheres, dinheiro, poder, carros, etc. Objetos
que adquirem significação fálica em uma dada cultura.
O lado não todo fálico, lado que designaria a
posição feminina, não está todo delimitado pelas significações sociais
localizadas na norma fálica. É preciso dizermos que, a norma fálica organiza as
cadeias significantes e a própria linguagem, permitindo que regulemos as
relações sociais através de discursos. Quem se coloca do lado mulher, portanto,
não está toda submetida a essa norma fálica, embora também esteja com um pé
dentro dela. O gozo feminino irrompe nessa lógica fálica apontando para um fora
da linguagem, fora do sentido, fora da norma, o que faz com que o feminino
tenha sido visto ao longo dos tempos como algo meio louco e desorganizador.
Agora, alguns pontos
importantes:
a) Nada impede que um ser portador de uma anatomia
masculina se inscreva do lado feminino ou vice-versa. É de uma escolha de gozo
que se trata, não de anatomia.
b) Existem diversas possibilidades de se localizar
nessas duas lógicas.
c) Nós não nos relacionamos sexualmente com
pessoas, mas com um objeto que causa nosso desejo e que situamos nela. Nos
investimos o objeto.
d) A escolha de objeto não está condicionada pela
posição sexuada.
O que podemos deduzir
desses tres pontos é que, como dizia um antigo comercial, "existem diversas
maneiras de preparar Neston":
· Um ser
que nasceu portador de um pênis ou de uma vagina, pode se colocar do lado
masculino e escolher investir um objeto sexual que está localizado em uma
mulher ou em outro homem.
· Um ser
que nasceu portador de um pênis ou de uma vagina pode se colocar do lado feminino
e escolher investir um objeto sexual que está em um homem, em uma mulher ou até
em Deus, caso do gozo místico.
A única condição para
que essa combinatória aconteça é que esteja colocada a diferença sexual. Não há
sexo entre iguais, é sempre uma alteridade que se busca, aquilo que eu não
tenho. Isso leva Quinet (2013) a afirmar que, a rigor, a homossexualidade não existe.
Para haver sexo é preciso que alguém se coloque do lado todo fálico e alguém do
lado não-todo fálico, para além da diferença anatômica entre os sexos.
(Texto
apresentado no grupo de vivências do Encontro Nacional de Estudantes de
Psicologia - ENEP, realizado em agosto de 2014 na Universidade Estadual
do Ceará)
Referência
QUINET, A. A Escolha do sexo com Freud e
Lacan. In As Homossexualidades na Psicanálise. QUINET, A. e COUTINHO JORGE, M.
A. Orgs. São Paulo: Segmento Farma, 2013
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