Poderíamos contar os últimos dias apenas por imagens e, certamente, elas
servirão muito àqueles que se dedicarem a escrever a história do golpe político
que o Brasil vem sofrendo vivendo desde agosto de 2016 e que hoje se concretiza
com o ex-presidente Lula transformado em preso político na “República de
Curitiba”. Mas talvez poucas delas sejam tão capazes de sintetizar a “moral” subjacente
ao que veio sendo gestado em nosso país como a de Oscar Maroni vestido de
prisioneiro exibindo a genitália de uma prostituta semidesnuda, calcinhas arreadas
nos joelhos, diante de uma turba convidada para comemorar a prisão de Lula. Para
quem não sabe, Oscar é um cafetão famoso no mundo da pornografia e dono da casa
Bahama que a imprensa chamou de “centro
hedonista”, tucanando definitivamente o “puteiro”. Ele também ficou conhecido
por ser preso diversas vezes por formação de quadrilha, exploração e prostituição.
Atrás de Maroni e o corpo exposto da mulher, perfilam-se, entre homenageados e
abençoadores da cena, os rostos do paladino da justiça, juiz Sergio Moro, e da ilustríssima
ministra do Supremo (com tudo) Tribunal Federal, Senhora Carmen Lucia. A festa
é o cumprimento de uma promessa feita em 2016. Num vídeo que pode facilmente
ser acessado na internet, Maroni promete cerveja, caso Lula seja preso, no
seguinte diálogo:
"Se o Lula for preso,
a cerveja é de graça até a meia noite. Agora, se matarem ele na prisão, a
cerveja vai ser de graça durante o mês inteiro". Outro homem que está
numa mesa junto ao empresário questiona caso a morte seja com crueldade.
"E se for sofrida, a morte?". Ao que Maroni responde em tom jocoso:
"Aí eu dou meu rabo".
Impossível ver a cena e não
ser lançado imediatamente na imageria de “Os 120 Dias de Sodoma” do famoso
Marquês de Sade. Na obra um padre, um financista, um juiz e um
nobre francês reúnem-se no castelo de Silling, para por em prática as mais inomináveis
práticas sexuais junto à jovens meninas e meninos arrancados de suas famílias, acompanhados
de um grupo de pessoas compostos por prostitutas, homens viris e velhas feiticeiras.
Numa das cenas mais famosas, uma jovem garotinha implora por clemência em nome
de Deus e ouve a frase da nossa epígrafe.
Tanto
a frase como a metáfora do livro são muito inspiradoras nesse momento porque
nos permitem deslindar a montagem perversa que age como plano de fundo do
golpe. Tentarei pincelar aqui algumas de suas coordenadas.
A
ideia de Deus, da moral pequeno burguesa, da família e dos bons costumes sempre
foi usada para trazer à tona nossos medos mais secretos. Medo de algo que não
conseguimos nomear, mas que insiste a partir de dentro e do qual não podemos
fugir. Esse medo, em última instância, podemos reduzir ao nosso próprio corpo,
mas que facilmente toma a forma do outro a quem julgamos dever extirpar. Um outro ameaçador, que com seu gozo obscuro
põe em risco nossas conquistas. Foi assim em 64, tem sido assim nos
últimos tempos (considerando apenas que agora temos essa figura pouco
convencional do ator pornô que milita na defesa dessa moral).
O
Outro, desde priscas eras, tem um nome no Brasil: o comunista. Ele mata
pessoas, come criancinhas, é ateu, não respeita a família nem a...propriedade. É
aí que chegamos a verdade desse discurso. A manipulação do medo como a
experimentamos não está a serviço de outra coisa que a manutenção de uma ordem financeira.
O deputado que votou pelo impeachment de Dilma em nome de Deus e da família não
dá a mínima para esses valores. Foram todos comemorar a vitória no prostíbulo,
como foi divulgado na época.
Estavam
todos, sim, a serviço do dinheiro que corria solto nas propinas e que foi
cortado pela presidenta deposta. Dinheiro que corre a serviço da norme – mâle, como diz Lacan, fazendo um
jogo significante entre “normal” e “norma macho” que aponta para o lugar do
falo na regulação do gozo em sua tradução significante. Ao contrário do que muitas
vezes se pensa, a norma fálica não se pauta na potência do órgão masculino, mas
justamente em sua insuficiência em saturar o desejo humano. Não estamos mais
sob o primado do instinto que programa o macho para a fêmea e vice-versa. Somos
regidos pela pulsão que, em sua premência incessante, não conhece objeto que a
satisfaça completamente. A norma fálica inscreve para o neurótico essa falta na
cadeia simbólica e faz com que passemos a perseguir o ponto que localizamos
como resposta ao enigma norteador do desejo. Alguns colocam aí o dinheiro, o
amor, o trabalho. Mas de todo modo ela faz parecer menos louco o fato de
estarmos todos correndo atrás de algo. A norma fálica também estrutura a
fantasia do neurótico como aquele cenário onde haveria um outro que goza
plenamente, um gozo que o neurótico desconhece conscientemente, mas com o qual mantém
um jogo de aproxima e afasta repetitivo.
No
entanto, a norma fálica não faz só o neurótico. Ela também se inscreve de algum
modo para o perverso. Só que este, ao contrário do primeiro, não se localiza no
polo faltante dessa fantasia. O perverso “sabe” do gozo do outro e é como seu
agente que ele se coloca. Ele põe em cena para o neurótico o objeto que supõe
ser causa de sua divisão e de sua angústia.
Para
além da fantasia, seja ela neurótica ou perversa, nem todo gozo se se deixa
dizer pela norma fálica. Trata-se, como elaborou Lacan, do gozo feminino que,
em ser não-todo fálico, aponta para o que extravasa essa lógica do ter e para o
que não se deixa amoedar no discurso. Por isso, se por um lado a mulher pode
ser tomada por um homem como objeto causa de seu desejo e lugar onde este vai
recortar o objeto para gozar com ele no encontro sexuado, por outro lado, o gozo
propriamente feminino encarna tudo aquilo que se coloca como alteridade
radical, inclusive para ela mesma.
Voltemos
para a cena sadeana de Maroni e sua relação com o golpe. Ela encarna o gozo
obsceno que deveria permanecer velado em todo o discurso que sustenta essa
trama. O golpe está a serviço da manutenção de uma ordem perversa que não
aceita a falta. Que não admite tocar na distribuição de renda, não admite pobre
viajando de avião, nem porteiro passando férias em Miami. Não admite “analfabeto”
presidente. Mais ainda, não admite mulher governando! Se há um lugar para a
mulher na lógica do golpe esse só pode ser o de objeto de exploração (bem
diferente do objeto causa do desejo) como pedaço de carne, olhos vendados e
genitália exposta ao espetáculo dado aos homens que votam em nome de Deus, da
família...e da propriedade. É a lógica que matou Marielle, que depôs Dilma e
que quer ver Lula morto. É assim que, em
nome de Deus, os homens de bem localizam uma Lei para corrompê-la, com os mesmos
significantes que usam para encobrir seu golpe. É assim que temos pedófilos
votando leis anti-pedofilia, estupradores votando leis anti-aborto, traficantes
votando leis anti-drogas, assassinos votando pela pena de morte e corruptos
votando leis anti-corrupção.
Por
isso tudo, podemos dizer que o golpe é machista, é racista, é fascista. Por
isso tudo, a única chance de resistirmos é se aprendermos de algum modo a somar
forças diante dele e não cedermos ante a sedução do narcisismo das pequenas
diferenças. A meu ver o discurso, já histórico, do presidente Lula, ao desapegar-se
da sua persona e colocar-se a serviço da militância (mesmo sabendo que corre o
risco de não sair vivo dessa prisão), deixa algumas dicas nesse sentido:
“não
adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque não
sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia. Uma ideia misturada com a ideia de
vocês.”
Que
suas palavras lançadas aos que partilham de algum modo dos ideais da esquerda possam
ser capazes de superar e produzir algo em sentido divergente da (obs)cena de
seus inimigos.
Caríssima Lia,
ResponderExcluirSeu texto é uma martelada nesse gozo obsceno que reduz o outro a sua condição real de abjeto. Sua lucidez é cortante. E a analogia com "Saló" uma pérola para o pensamento.
Muito obrigado pelo alento.
Abraço,
Leonardo Danziato
Querido Leonardo, O texto foi escrito na angústia, mas se trouxe algum alento nesse momento tão sofrido, já valeu a pena. Estamos juntos!
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