O mundo é feito de um jeito que nos leva a acreditar numa
espécie de geração espontânea do desejo, como se desejar fosse o equivalente
psíquico da respiração. Penso, logo sei o que desejo, o “em busca do quê corro”.
Da mesma forma, sei exatamente o que não quero, o que me incomoda, o “pra longe
de quê fujo”.
O “em busca de quê corro” está em tudo que se constrói e defende-se
com unhas e dentes. Como geralmente coloca-se muito suor nessa empreitada,
passa-se a defender a isso como a si mesmo. Tanto que se torna praticamente
impossível viver sem isso. Corre-se por tanto tempo nessa direção que às vezes
nem se sabe mais por que. Corre-se pelo gosto da corrida. E afinal, se
parássemos de correr, iríamos fazer o quê mesmo? Corremos, portanto. Só para não ter que se
deparar com o risível vazio dos que não tem pra onde ir.
Já o “pra longe de que fujo” é tão antigo quanto seu
oponente. Cedo na vida descobre-se que há motivo pra temer... só se esquece o
“quê”. Enfim, não se trata de um caso de “mal” metafísico genericamente
apreendido. Trata-se “daquele” inimigo íntimo com o qual dorme-se e acorda-se
todos os dias. Mudam as configurações, as pessoas, os adereços, mas é sempre a
sua cara sinistra em todas elas. Engraçado que mesmo em meio a toda essa
intimidade , nem sequer se desconfia de que ele talvez tenha mais afinidade
consigo que “aquilo em busca do que corro”, afinal de contas, enquanto este
último precisa ser buscado, perseguido, o mesmo não acontece com o primeiro.
Chega sem ser convidado, não faz a
mínima cerimônia e se instala como se a casa fosse sua.. e não é? Não! Grita-se
com a força que restou do esforço que se fez correndo. Eu não sou isso! Eu não
quero isso! Sem falar que o “isso” e questão é o exato avesso do que se
acredita ser e, portanto, coloca em xeque tudo que diz respeito à segurança do
hábito humeano. Talvez resida aí a explicação para o fato dele ser o fiel
companheiro ignorado de um Dom Quixote às avessas que insiste em não atribuir realidade
às suas sombras.
Um dia descobre-se (e nada é garantia de que esse dia
chegue) que, por trás de todas as cortinas erigidas para dar ao mundo essa
sensação de ordem, aquilo “em busca de quê corro” e aquilo “pra longe de quê
fujo” não pertencem à planos distintos. Pelo contrário, são antes as duas
pontas do mesmo laço de fita e, no meio, você. Isso sem falar que as duas
pontas da fita se encontram e então quando você corre demais atrás do que quer
acaba encontrando o que não quer e vice-versa.
A primeira reação pode ser tentar livrar-se disso. Ok, posso
até reconhecer que “aquilo de quê fujo” faz mesmo parte de mim, não sou tão
amável quanto pensava..tudo bem. Mas tratemos de fazer uma bela faxina e cortar
“o mal pela raiz” como se diz por aí. O
problema, meu amigo, é que em se cortando uma das pontas, desfaz-se o laço, e
aí não sobra muito espaço pra chamar de seu. Nesse ponto (se chegou até aí)
você é obrigado, enfim, a reconhecer: é meu desejo! Eu sempre desejei isso “pra
longe de que fujo”. É realmente incrível o poder libertador disso. Ao nomear e
subjetivar o inimigo, ele perde seus poderes demoníacos. Ele é só humano,
demasiadamente humano e próximo.
É estranho que se leve tanto tempo só para poder assumir o
que se deseja. Só que esse ainda não é o fim da jornada. A questão que se
coloca é (como ouvi esses dias da boca de uma lady que, certamente, fez a
travessia): sabendo de tudo isso, você ainda quer o que você deseja?