“Aceitem as regras e
estarão conectados!”, informou uma das organizadoras do evento enquanto a mesa,
composta por reconhecidos nomes da psicanálise, se acomodava. A frase dizia
respeito a um probleminha que tinha ocorrido com a rede de wifi e que agora
precisava ser registrada para que pudéssemos acessá-la. Mas lembrada a posteriori, parece mais um prenúncio
do que se seguiria.
Freud, em 19 de abril de
1935, escreveu numa carta à uma mãe de um jovem homossexual:
“(...) Não tenho dúvidas que a homossexualidade não representa
uma vantagem, no entanto, também não existem motivos para se envergonhar dela,
já que isso não supõe vício nem degradação alguma. Não pode ser qualificada
como uma doença e nós a consideramos como uma variante da função sexual,
produto de certa interrupção no desenvolvimento sexual. Muitos homens de grande
respeito da Antiguidade e Atualidade foram homossexuais, e dentre eles, alguns
dos personagens de maior destaque na história como Platão, Miguel Ângelo,
Leonardo da Vinci, etc. É uma grande injustiça e também uma crueldade,
perseguir a homossexualidade como se esta fosse um delito.”
Nem
precisávamos desse posicionamento explícito do pai da psicanálise para
deduzirmos que o campo do saber por ele inventado, rechaça qualquer
interpretação da sexualidade humana como normatizada: a sexualidade infantil
perverso-polimorfa, a variedade ampla do objeto da pulsão, a bissexualidade originária,
a dupla vertente do édipo, enfim.
Por
isso, passados mais de 80 anos da carta mencionada acima, tendemos a pensar
(pelo menos entre quem está engajado em uma comunidade de analistas) que a
transferência com a psicanálise, por si só, seria uma garantia de um
posicionamento mais aberto acerca da desnaturalização da sexualidade humana. Especialmente
entre os ditos “lacanianos”, acostumados que estão com a leitura da entrada no
simbólico como subvertendo tudo que pudesse ser tomado como instintual.
Mas
o trabalho apresentado por Antonio Quinet no IX Encontro da IF/ EPFCL
Brasil em Medellin, Colômbia, alertou a uma plateia, atônita, que não é bem
assim. Reunindo trechos de textos e falas proferidas em entrevistas por alguns
analistas contemporâneos, Quinet mostrou como tem sido frequente o recurso de
certos psicanalistas à teoria psicanalítica para se posicionarem contrariamente
a temas da atualidade como o casamento homoafetivo e a adoção homoparental.
Um afeto de horror
atravessou a plateia que, entre “ohhhs” e “uhhhs”, ouvia os relatos de
declarações homofóbicas (ou homoterroristas, como chamou o autor do trabalho)
que reduziam a diferença sexual à anatomia e o Édipo Freudiano à noção de
família nuclear burguesa “com pai, mãe e filho natural registrado em cartório e
batizado”. Algumas declarações chegavam a associar a homossexualidade a uma
perversão inata a esses sujeitos e a comparar a adoção de crianças por casais
homoparentais às ações do “Estado Islâmico”. (Isso enquanto ouvíamos pelos
corredores do evento as notícias sobre o atentado em Nice e ainda guardávamos
na lembrança o pesadelo do ocorrido em Orlando).
Durante a apresentação,
o sistema de som (ou de tradução) falha temporariamente. Um real que se
atravessa? Quinet resume o que já havia apresentado e rebate todas as teses
homofóbicas com argumentos brilhantemente ancorados na obra freudo-lacaniana e
na sua própria experiência com a psicanálise.
Enquanto o escuto, suas
palavras vão se encontrando e afetando outras memórias. Uma delas ecoava mais
forte: o assassinato de uma criança, João Donati, de 18 anos, na cidade goiana de Inhumas. O jovem teve suas pernas quebradas, foi torturado e enforcado. Em
sua boca encontraram um bilhete, escrito pelo assassino, que fazia menção ao
fato de ele ser homossexual.
Até escrever esse texto, não sabia porque essa memória tinha
se presentificando com tanta força ao ouvir a apresentação de Quinet. Talvez
porque soube dela como uma invasão do real (estamos todos conectados, para o
bem e para o mal): acessava a linha do tempo do Facebook e, sem ter tempo de
decidir se queria mesmo ver aquilo, aparece-me uma foto do corpo do rapaz como
foi encontrado em um terreno baldio, desfigurado, ao lado de uma foto de seu
perfil na rede social. Podia ser meu filho, podia ser o filho de um amigo. Foi
demais.
Mas ao pesquisar para falar aqui desse caso, lembrei o que
dizia o bilhete encontrado no corpo de João: “Vamos acabar com essa praga”. Foi
esse significante “praga” que encadeou minha lembrança à fala de Quinet que, por
sua vez ressoava com outro comentário proferido, nesse mesmo encontro, por
Colette Soler: a psicanálise não se transmite pelo saber, ela é, antes
epidêmica, transmitida como uma praga. Já disse Freud quando ia visitar os
americanos: “Eles não sabem que estou indo lá levar a peste”.
De um lado, o objeto de ataques terroristas (e
homoterroristas) do outro, a psicanálise. O que eles tem em comum? Ambos
convocam o real, ambos tocam a peste. Mas não certamente da mesma maneira. O
discurso analítico é o único que permite fazer algo frente a isso que irrompe
como diferença insuportável, mas que habita o cerne do nosso ser. Permite
tocá-lo sem precisar destruí-lo, aniquilá-lo, torturá-lo e matá-lo.
Por fim, uma outra epidemia entra na minha cadeia
associativa. Enquanto passeava pelas ruas mágicas de Cartagena (ali entendemos
de onde vem o realismo fantástico de Gabriel Garcia Marques[2])
lia nas horas de descuido “O Amor nos Tempo do Cólera”. Ao ser tomada pelas
histórias de Fermina Daza, Florentino Ariza e Juvenal Urbino e fazê-las
encontrar com o que ouvi na apresentação de Antonio Quinet, lembrei da frase de
um desses personagens: “...lhe tinha amor bastante para vê-la com olhos de
verdade."[3]
Não é qualquer amor que permite ver o outro com olhos de
verdade, é o que nos diz Gabo. No que diz respeito às parcerias amorosas, aceitar
as regras não é garantia de que estejamos conectados. Há sempre um gozo
estranho que se atravessa e que é impossível de conectar.
Fica a pergunta: seria possível hoje, em tempos de surto de
cólera (do afeto, mais que da bactéria), pensarmos uma psicanálise que responda
à questões da atualidade como uma possibilidade de um novo amor, um amor que
seja bastante para que possamos ver o outro com os olhos da verdade, sem que
isso nos leve a querer destruí-lo? A apresentação de Quinet me faz acreditar
que sim, sob o preço de que não nos calemos e de que não façamos da psicanálise
uma justificativa para nos adequarmos às regras.
[1] “Parcerias
amorosas e laços sociais” é o título da apresentação proferida por Antonio Quinet no IX Encontro da IF/ EPFCL
Brasil em Medellin, Colômbia
[2]
Categoria que ele mesmo rejeitava: "é
só realismo. A realidade que é mágica. Não invento nada. Não há uma linha nos
meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação".
[3] Marques, Gabriel Garcia. O
Amor nos Tempos do Cólera. Rio de Janeiro, Record, 1985.