Comemorar o centenário de Marguerite Duras
em Fortaleza não é propriamente um lugar comum. A escritora, diretora e
roteirista não é tão conhecida em terras alencarinas. Além disso, a própria
autora não apostava nas propriedades de laço social que poderia advir de sua
obra. Como bem lembrou Dominique Fingermann, ela diz em “A Dor”: “Aqueles que vivem de dados gerais
nada têm em comum comigo. Ninguém tem nada em comum comigo."
E
no entanto, a escrita dessa mulher me afetou de uma maneira indelével, de um
modo estranho, que eu ainda não consigo colocar apropriadamente em palavras. Arrebatadora,
ela, e nós os arrebatados, disse Lacan.
Talvez
o que permita a essa obra ressoar em Paris ou no sertão do Ceará, seja
exatamente, não o dado geral, mas o estranho, o violento, o arrebatamento de
algo completamente desconhecido, mas que no entanto, esteve sempre ali.
Estes
foram alguns dos afetos experimentados na minha primeira leitura de M.D. O
livro era “O Amante” (Sua obra mais conhecida e ganhadora do prêmio Goncourt, o
prêmio literário mais cobiçado da França).
A
história, versava sobre uma menina vietnamita em uma balsa fazendo a travessia
do rio Mekong e de um homem mais velho, um chinês, que se tornaria o “amante” em questão. Mas já
estavam ali presentes também os diversos elementos biográficos(?) que eu
encontraria depois em diversas outras obras. Marguerite fala de uma forma
totalmente despudorada da loucura da mãe em sua obstinação em possuir terras;
da prostituição velada a que ela se submete e que a família acompanha cúmplice,
apenas pela possibilidade de comer em um restaurante; do amor incestuoso pelo
irmão mais novo que morreria cedo, devastando M.D., e a fúria sádica do irmão
mais velho, o delinquente.
Realmente,
nenhuma dessas experiências tem nada em comum comigo. E ainda assim (e talvez
por isso mesmo) eu me perguntava, porque isso me revira? Não sei responder. Mas
isso me pôs a trabalhar, de várias maneiras.
Parte
desse “motor de trabalho” foi o que enderecei ao dispositivo de cartel,
elemento constitutivo da formação do analista na Escola de Lacan. Recentemente
propus um cartel com o tema “Escrita e psicanálise”, que se encontra em
funcionamento. Considero que esta proposta é tributária da minha leitura da
obra durrassiana, pois a inquietação provocada era o que estava como pano de
fundo.
Com
frequência, durante as nossas reuniões, seu nome me vem à boca. Mas continuo
ainda sem saber exatamente porque. Talvez o cartel (que ainda está no começo) me
permita aos poucos elaborar algo sobre isso. E esse texto já é um começo.
Ele
parte inicialmente de uma observação feita pelo “mais-um” desse cartel, na
nossa primeira reunião. Discutíamos sobre o quão ampla eram as possibilidades
de relação entre escrita e psicanalise: análise de uma obra, o estudo de um
autor específico, a busca por conceitos
psicanalíticos em uma obra, etc. Mas nesse dia, foi ficando claro que não era
nada disso que se tratava. Até que o mais-um formulou explicitamente a nossa
pergunta: do que é que se trata quando se escreve? O “de que se trata” não no
sentido do conteúdo, mas do processo mesmo de escrever. O que é Escrever? Porque
se escreve? Como se escreve? O que acontece com quem escreve? E com o escrito?
Enfim,
essas são questões ainda incipientes e que ainda não podem ser completamente respondidas.
Ainda movem ao trabalho do cartel. Mas já que o nome de Marguerite Duras esteve
desde o início como pano de fundo para a constituição desse cartel, pensei que essa oportunidade de dizer algo
sobre ela, seria excelente para endereçar-lhe essas perguntas e tentar ver o
que ela responderia. Convido-os a seguirmos esse rastro por onde, como já disse
Freud, o artista antecipa o psicanalista nas respostas.
***
Comecemos
então com o “o que é escrever?”
Temos
aqui uma resposta polêmica de M.D., pois para ela, muitos daqueles que são
considerados escritores, não o são, ou
não o foram. Sartre, por exemplo, ela diz que não foi escritor. Pode ter sido
um cronista, um sociólogo, um moralista, mas não escritor: “O escritor é um
selvagem – e Sartre é mais do que um civilizado.”.
Escrever,
para Duras, é algo que nasce da possibilidade de tudo por em duvida. (Écrire, p.
21). A escrita, segundo ela, nasce de um momento fatal do qual não se pode
escapar, em que tudo é posto em questão: “o casamento, os amigos, os amigos do
casal. Menos o filho. O filho não é nunca posto em dúvida. E essa dúvida começa
a crescer em torno de si. Trata-se de um encontro consigo onde não há mais nada
a perder, só se escreve verdadeiramente quando se está perdido: quando não se
tem nada a escrever, a perder, se escreve.”(Écrire, p.22)
Apesar
de fatal e terrificante, esse momento em que tudo é posto em questão é o que
abre caminho para aquilo que é necessário para que se possa escrever: a
solidão.
Para
M.D. só é possível escrever na solidão. Não existe escrita a duas mãos. Ela diz
que você pode compor a duas mãos, cantar a duas vozes, por exemplo. Mas escrever
jamais. Então é uma solidão necessária,
mas terrificante.
Essa
solidão é tributária desse “questionar tudo” do qual não se pode fugir. É dessa
dúvida, nasce a solidão. Ela diz inclusive que muita gente fugiria diante do
horror disso, e é por isso que não temos tantos escritores assim.
Então
é como se escrever fosse esse se descolar do que é conhecido, colocar em dúvida
tudo que já se sabe, numa travessia rumo ao desconhecido. Essa é outra
indicação dela sobre o que é a escrita: Não se escreve sobre o que já se sabe.
“A escrita é o desconhecido. Antes
de escrever não se sabe nada do que vai ser escrito. É o desconhecido de si, de
sua cabeça, de seu corpo. Escrever não é nem mesmo uma reflexão. Escrever é uma
espécie de faculdade que se tem ao lado de sua pessoa, paralela a ela mesma uma
outra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera,
e que algumas vezes, por sua própria criação, está em risco de perder a vida.
Se soubéssemos algo do que vai ser escrito antes de fazê-lo, nós não
escreveríamos.” (Écrire,p.52)
Essa
última frase, foi de Lacan que ela a recebeu. Lacan disse sobre ela: “Ela não
deve saber sobre o quê ela escreve. Porque ela se perderia. E isso seria a
catástrofe”. Duras ficou aturdida. E fez disso “uma espécie de “identidade de
princípio, de um “direito de dizer” totalmente ignorado das mulheres.”
Agora,
podemos perguntar sobre quais as indicações de MD sobre o “Como
escrever?”
Então,
em primeiro lugar, na solidão. Em segundo lugar, ela diz: com a força do corpo.
“É preciso ser mais forte que si mesmo para poder abordar a escritura, é
preciso ser mais forte que aquilo que vamos escrever. É uma coisa engraçada,
sim. Não é apenas a escrita, o escrito. É o grito das feras da noite, os gritos
de todos, os meus e os seus, o grito dos cães. É a vulgaridade massiva,
desesperadora, da sociedade. A dor, é também Cristo e Moisés, e os faraós e
todos os judeus, e todas as crianças judias, é também o mais violento da
bondade.” (Ècrire, p.24)
Enfim,
perguntemos agora à Duras: porque
escrever?
Para
escapar da morte, diz ela. “A solidão é isso, ou o livro, ou a morte”. “Ser
escritor é se encontrar diante de um horror onde só a escrita
poderá salvá-lo”.
Temos então em M.D. esse conjunto de
elementos sobre o que é a escrita e o processo de escrever: a vida posta em
questão; a dor; a solidão; a busca por algo que possa salvá-la da morte; a
necessidade de nisso colocar o corpo e, eu gostaria de adicionar, a
possibilidade de devir outra coisa a partir do escrito. Por exemplo, na entrevista
que ela concedeu a Bernard
Pivot em 1984 para o programa de TV Apostrophe, ela diz que com
o livro “o amante” foi que ela conseguiu perdoar o irmão. E noutro momento quando
ela fala da casa que conseguiu comprar com a venda de “barragem contra o
pacifico”, obra em que ousou falar da mãe.
Veremos agora o que esses elementos podem
nos ajudar a pensar a questão da escrita na psicanálise.
Escrita
em Duras e Psicanálise: Pontos de interseção
Lacan aproximou de alguma maneira a função
do escrito e aquilo que se processa em uma análise. No Seminário 18, De um
discurso que não fosse do semblante, por exemplo, ele diz que “a diz-mansão da
verdade em sua morada é algo que só se faz pelo escrito na medida em que é
somente a partir do escrito que se constitui a lógica.”
Como poderíamos entender essa frase de
Lacan?
Se remetermo-nos a experiência, o que é
fazer análise? É antes de tudo falar. Falar livremente, disse Freud,
associando. Porque topamos, nós e cada analisante que inicia seu percurso, essa
proposta freudiana? Penso que entrar verdadeiramente nisso só é possível
quando, como disse Duras, algo é posto em dúvida. Não só os amigos, os
amores... mas aquilo que dava sustentação a todas essas relações. Não é quando
surge um sintoma que alguém busca verdadeiramente uma análise. Mas quando o
“sujeito vê soçobrar a segurança que ele extraía dessa fantasia em que se
constitui para cada um sua janela sobre o real”. (Lacan, sem 13 apud Quinet).
Nessa frase Lacan está tratando da travessia da fantasia que conduz ao final de
uma análise. Mas penso podermos dizer que isto já está colocado desde o início.
Sem esse “por em questão” como diz Duras, não há escrita, não há análise.
Daí, a solidão. Também não se faz análise à
dois. Primeiro porque a análise promove uma descolagem do outro imaginário,
apontando para o impossível de fazermos dois com ele. Depois porque, embora
estejam ali presentes, analisante e analista, não se trata de uma relação
intersubjetiva. O analista não está ali como pessoa, nem mesmo como sujeito.
Ele está ali como semblante do resto que sobrou da divisão constitutiva do
sujeito, divisão estrutural e inevitável para todo ser falante. Como disse
Dominique Fingermann certa vez aqui em Fortaleza, o amor de transferência diz
“dois”. O analista em seu ato, diz “um”.
Então, topamos essa solidão e nela um gozo
permitido: tudo falar, livremente, associar. Constituímos assim a diz-mansão ou
a mansão dos ditos[1].
Podemos dizer que “interrogar a diz-mansão
da verdade” é a função de uma análise. Muitos ditos, que em sua rede de
associações começam a remeter a um dizer. A verdade teria a ver com isso, com o
dizer que funda todos esses ditos. Nesse sentido, interrogar a verdade seria extrair
um dizer, ou seja uma lógica, desses ditos. E isso só seria possível a partir
do escrito. Teríamos então uma escrita da análise. Ou, como diz Luciano Elia,
num dos primeiros textos que lemos no nosso cartel da Escrita e Psicanalise:
“A
função da escrita permite a interrogação sobre a verdade, tornando efetivas e
permanentes as consequências do dizer do sujeito em análise (dizer que, fora da
escrita, pode esvanescer-se em sua contumaz paixão pela ignorância, pelo não
saber) e, como o que permite escrever o gozo em um novo corpo, o corpo de
letras que substitui o corpo do sintoma. O corpo do neurótico, mal tratado pelo
sintoma, pode ser reescrito em um corpo de letras: o gozo, escrito nesse corpo,
não é o mesmo gozo de que o sujeito padecia, no tempo em que as letras que
poderiam escrevê-lo estavam para ele perdidas.” (Elia, p.135)
Vemos agora surgir aí a
terceira intercessão entre a escrita durassiana e a análise: é preciso
comparecer com o corpo. Como disse Freud, “́impossível liquidar alguém in absentia ou in effigie”, sendo que o alguém em questão não é certamente o
analisante, mas o gozo mortífero da repetição do qual o sujeito padece.
Mas aqui, acho importante pontuar pelo
menos uma diferença radical entre a escrita segundo Duras e o processo de
análise. É que, pela operação do discurso do analista, é possível, pelo menos
em certa medida, evitar que a passagem ao ato leve o sujeito às raias do
suicídio ou do alcoolismo desenfreado. O sofrimento de Duras com o Álcool foi
retratado no livro de Yann
Andréa Steiner (com quem M.D. formou um improvável casal: ele, um jovem
homossexual. Ela, uma mulher já deidade avançada). Apesar de ter tido problemas
com álcool ao longo de boa parte de sua vida, o livro M.D. retrata um período
em que ela esteve á beira da morte, desacordada por vários meses. Na verdade,
na entrevista concedida ao programa Apostrophe, ao ser perguntada se passou por
uma ressurreição, ela diz que não e dá a entender que morreu mesmo ali. Enfim,
acredito que o desejo do analista pode conduzir as coisas sem carrear tanto
estrago.
Certamente,
há diversos outros elementos que afastam a escrita do artista, da escrita numa
análise. A possibilidade mesmo de um final onde ocorra essa reescrita do corpo,
não acho que seja plenamente viável através da arte. Penso aqui em Ernest
Hemingway que, ao ser perguntado se fazia análise, respondeu que seu analista
era a sua Corona portátil, número três (referindo-se à sua maquina de escrever)
mas que, posteriormente suicidou-se com
a mesma arma com que o pai havia se matado anos antes e que sua mãe o enviara
pelo correio. Todos recebemos os desígnio do Outro de alguma maneira, alguns de
forma mais trágica e direta...
Então,
acredito que seja a isso que Lacan se refere quando diz que o analista seja o
único parceiro com alguma chance de responder. Responder fora da repetição e
seu gozo mortífero.
No entanto, a despeito das
diferenças, mais uma vez podemos dizer que Freud acertou em cheio quando disse
que o artista sempre precede o analista.
(Texto apresentado no Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza, por ocasião da comemoração do centenário de Marguerite Duras)
[1]
Com diz-mansão Lacan faz um jogo de
significantes que remete à dimensão da verdade, mas também morada da verdade,
lá onde moram os ditos.
Lia, que texto incrível! Uma lição sobre literatura, psicanálise e o trabalho em cartel.
ResponderExcluirFrancina Sousa.
FCL-MS
Que bom que você gostou, Fran! É muito bom quando um texto atinge seu propósito: afetar quem o lê.
Excluirabraços
Lia
Olá, Lia, tomei conhecimento do seu texto somente hoje, mais de um ano depois de apresentado e postado. Gostei muito, me inspirou a pensar sobre a escrita e escrever para a Jornada de Encerramento do FCL- SP. Obrigada!
ResponderExcluirOlá Caroline! e só agora, dois anos depois eu vejo seu comentário...rsrs..em tempos de facebook, quase não vejo o blog. Mas fico feliz em saber que he ajudou. bjs
Excluir