No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
(Manoel de Barros, 1993)
O objetivo deste texto é tomar a
expressão “paradoxo do gozo” utilizada por Lacan no seminário sete para examiná-la
em sua relação com a lei, relação esta que, neste mesmo seminário, é
apresentada como sendo da ordem do enigma.
Examinemos, em primeiro lugar, o que é um
paradoxo. A doxa, como se sabe, deriva do grego e refere-se a uma opinião ou
crença comum. Esta crença comum, por sua vez, depende diretamente da articulação
entre dois aspectos: o bom senso e o senso comum. No livro intitulado A Lógica do Sentido o filósofo francês
contemporâneo de Lacan, Gilles Deleuze (1974), define esses elementos da
seguinte forma:
a) o bom senso se caracteriza pela
afirmação de uma direção possível, de um senso único. Essa direção vai do mais
diferenciado ao menos diferenciado, do singular ao regular, do passado ao
futuro. Ela exprime a existência de uma ordem de acordo com a qual é preciso
escolher uma direção e se fixar a ela.
b)
Já o senso comum se caracteriza pela suposição da existência de uma
subjetividade e de uma objetividade partilhadas. No plano subjetivo, parte da
consideração de uma unidade capaz de dizer “Eu”: “é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra-se, sabe etc.; e
que respira, que dorme, que anda, que come...” Correlativamente, no plano
objetivo, o bom senso refere-se também a unidade do objeto ou de mundo: “é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o mesmo que percebo, imagino
e do qual me lembro... e é no mesmo mundo que respiro, ando, fico em vigília ou
durmo, indo de um objeto para outro segundo as leis de um sistema determinado.”
(Deleuze, 1974, p. 80).
Há ainda uma solidariedade entre o bom
senso e o senso comum para engendrar o que é da ordem do sentido. É a partir da
articulação entre essas dimensões que implicam na suposição de uma ordem e de
uma permanência, que se pode jogar o jogo do sentido. Pois bem, o paradoxo se
define exatamente por se opor a esses dois aspectos da doxa, tanto ao bom senso
como ao senso comum. Primeiramente porque ele não supõe mais uma direção única,
nem mesmo uma direção contrária. A potência do paradoxo consiste em apontar dois
sentidos e duas direções ao mesmo tempo. Em segundo lugar, porque no terreno do
paradoxo as identidades se dissolvem.
Como afirma Deleuze (1974, p. 94):
“O paradoxo é a subversão simultânea do bom senso e do senso comum: ele
aparece de um lado como os dois sentidos ao mesmo tempo do devir-louco,
imprevisível; de outro lado, como não-senso da identidade perdida,
irreconhecível. Alice é aquela que vai sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo:
O país das maravilhas (Wonderland) tem uma dupla direção sempre subdividida.”
Ainda assim, o paradoxo não é exatamente
contraditório – o que implicaria em uma anulação de seus enunciados. Na
verdade, ele aponta para o plano do impossível, lá onde se pode assistir à
gênese da contradição: “É contudo aí que se opera a
doação de sentido, nesta região que precede todo bom senso e senso comum. Aí, a
linguagem atinge sua mais alta potencia como paixão do paradoxo” (Deleuze,
1974, p. 94).
Ou, como ensina Manoel de Barros[1]
(1996, p.47), o paradoxo é o “criançamento
das palavras. Lá onde elas ainda urinam na perna”. É quando a criança “garatuja
o verbo para falar o que não tem”. Salve o poeta, que nos ensina de forma tão
mais bela aquilo que quebramos a cabeça para formular teoricamente!
Oportuno também a referência ao infantil
que esse poema traz, pois é nesse terreno que estamos quando se trata do
inconsciente. E é ele que interessa quando Lacan interroga as relações entre
desejo, lei e gozo para formulá-las em termos de paradoxo e enigma. Passemos,
então a examiná-las.
O
nó entre Gozo, Desejo e Lei
Primeiramente, tomemos a reação entre lei
e desejo. Ela remonta aos primórdios da psicanálise, desde que Freud, em sua
correspondência com Fliess, elabora o complexo de édipo como núcleo da neurose.
A universalidade da paixão pela mãe e do desejo de matar o pai, faz de cada um
de nós, em germe ou em fantasia, um personagem da tragédia grega Oedipus Rex (Freud,
1897/1980).
O pai abusador antes anunciado na teoria da sedução é substituído pelo
pai que interdita a mãe para o filho, lançando-o na tarefa de encontrar um
substituto para o objeto perdido. Alguns anos depois, Freud elabora outra
versão do pai, aquela encontrada em Totem e Tabu (1912-14/2012). Aqui também
está em jogo o desejo pelas mulheres inacessíveis e o assassinato do pai como
medida tomada pelo filho para ter acesso a elas. No entanto, o crime cometido,
ao invés de liberar o acesso ao objeto, invade os filhos com uma culpa que vai
levá-los a invenção do pai totêmico, pai simbólico portanto, que passa a reger
as relações entre os membros da tribo.
Pai sedutor, pai interditor, pai gozador, são as pére-versions
freudianas que aparecem como tentativa de dizer a verdade da neurose ao longo
de sua obra, apontando para seu “desejo de
encontrar um pai que seja o causador da neurose.” (Freud, 1897/1980, p.350).
Essa frase, diga-se de passagem, surge na carta 64 à Fliess, a mesma em que
Freud afirma estar perto de descobrir a origem da moralidade (o que sabemos, vai
desembocar na formulação do Complexo de Édipo).
Apesar
da última dessas versões já apontar para a ineficácia do assassinato do pai para
o acesso ao objeto interditado, ainda temos presente ai uma situação em que um
desejo pré-existente é impedido pelo pai que, esse sim, goza: “Um pai violento
e ciumento, que reserva todas as fêmeas para si e expulsa os filhos quando
crescem, eis o que ali se acha.” (Freud, 1912-14/2012, p. 216).
O
pai como agente da lei também está no cerne dos interesse do estudo de Jacques
Lacan que retomou o édipo freudiano extraindo daí o que é da ordem da
estrutura. No Seminário 5 (Lacan, 1957-58/1999) temos uma elaboração que vai
apontar para o lugar ocupado pelo pai em termos de função. Já não se trata mais
da pessoa do pai da realidade, mas do suporte de uma lei simbólica que se
dirige concomitantemente à mãe e ao filho: para a primeira – “tu não
reintegrarás o produto do teu ventre”; para o segundo – “tu não te deitarás com
tua mãe”. O pai surge diferenciado em suas dimensões imaginária, simbólica e
real, sendo que é na dimensão simbólica, como Nome-do-Pai que ele se coloca
como conferindo autoridade à lei. Tomar o Édipo enquanto arranjo simbólico
talvez seja o primeiro passo de um caminho que vai permitir à Lacan ir além de
Freud no que tange aos objetivos de uma análise.
Ainda
no seminário 5, Lacan afirma, com o Freud de Totem e Tabu, que o pai que promulga a Lei é o pai morto, o que já
começa por introduzir um paradoxo que ele só retomará no Seminário 7: se o assassinato do pai se dá pela cobiça do objeto
cuja posse a ele pertencia, como poderia a cobiça (enquanto desejo) existir aí
se é somente depois de morto que ele instaura a lei que permite desejar? Temos
então duas afirmações paradoxais: a) O pai morto é que instaura a Lei que
interdita o gozo; e b) É somente porque a Lei existe que o gozo se anuncia como
transgressão.
Foi
preciso dar mais um passo na incursão que levará Lacan a formular o campo do
gozo, como campo lacaniano. No Seminário
7 (Lacan, 1959-60/1991) ele faz referência à conferência proferida em 1960
em Bruxelas (publicada com o título de Discurso
aos católicos) onde recorreu a um trecho de uma epístola de São Paulo aos
romanos para apontar essa relação paradoxal entre o desejo, o objeto e a lei:
“Que Diremos então? Que a Lei é pecado? De modo algum. Mas
eu não conheci o pecado senão pela Lei. Porque não teria ideia da cobiça se a
Lei não me tivesse dito “Não cobiçarás’. Foi o pecado, portanto, que
aproveitando-se da ocasião que lhe foi dada pelo preceito excitou em mim todo
tipo de cobiças. Pois sem a Lei, o pecado não vive. Sem a Lei, eu vivia. Mas
quando o preceito adveio, o pecado recobrou vida, ao passo que eu encontrei a
morte.” (Lacan, 1960/2005, p. 24-25)
Lacan
nos sugere substituir o significante “pecado” pelo termo da “Coisa” para termos
aí uma indicação bem clara do nó do desejo com a Lei. O gozo da “Coisa” não
existia antes que a Lei se instaurasse. Pelo contrário, é porque a lei existe
que o gozo pode surgir como transgressão, ainda que “em germe ou em fantasia”,
como é o caso do neurótico. O neurótico, conjuga o verbo pecar (ou gozar) no
tempo verbal que só existe na gramática infantil e que foi poeticamente formulado
por Chico Buarque[2] em
“João e Maria”: agora eu era...agora eu era herói, agora eu tinha acesso ao
gozo, só que num tempo passado que só passou agora a existir. O paradoxo do
gozo aponta, portanto, para um paradoxo do desejo, que só pode se formular como
wunsch, como o voto expresso na
gramática do “agora eu era”.
Voltemos
para finalizar à relação o paradoxo com o impossível de onde brota o sentido. O
paradoxo não é escravo do bom senso, nem do senso comum. Ele aponta para um
não-senso, para uma verdade que, embora impossível de ser toda dita, exige que
algo possa, ali, ser formulado. No caso do paradoxo que enoda Lei, desejo e
gozo, a verdade que jaz impossível de ser toda dita aponta para o encontro com
a falta de um significante que possa nomear o gozo.
O
neurótico, ao se defrontar com a falta, com o impossível de dizer, recorre ao
pai para interditar aquilo que supõe correr o risco de gozar. Assim,
Para
que algo da ordem da lei seja então veiculado preciso que passe pelo caminho
traçado pelo drama primordial articulado em Totem e Tabu, ou seja, o assassinato
do pai e suas consequências, assassinato, na origem da cultura, dessa figura da
qual não se pode deveras nada dizer, temível, temida assim como incerta, a do
personagem onipotente, semi-animal da horda primordial, morto por seus filhos.
(Lacan, 1959-60/1991, p.211)
No
entanto, é essa própria impossibilidade que impõe a criação do mito do pai
gozador, seu assassinato e consequente instauração do pai simbólico enquanto
morto. Todo o mito é construído, afirma Lacan, para velar essa falha, fazendo
com que aquilo que era impossível, surja como interditado: “Esse
ato constituía todo o mistério. Ele é feito para nos velar isto, que não apenas
o assassinato do pai não abre a via para o gozo
que sua presença era suposta interditar, mas ele reforça sua interdição”. (Lacan, 1959-60/1991, p.211)
Sim, o pai está morto, mas se ele está é
porque o é desde sempre. Como afirma Lacan (1959-60/1991): “ele nunca foi pai a
não ser na mitologia do filho”.
Considerações Finais
O paradoxo, portanto, brota
ali onde uma falha se faz presente, opondo-se tanto ao bom senso, como ao senso
comum, resistindo ao fechamento do sentido, apontando para o impossível de
dizer tudo, o impossível da relação sexual. Em psicanálise sabemos que a
castração é o nome dessa falha.
O neurótico, por sua vez, é
aquele que constrói uma resposta frente a essa falha, ao articulá-la ao mito do
assassinato do Pai. Pai morto, pai simbólico, é ele enquanto “Nome-do-pai” que
vai permitir os deslizamentos e pontuações da cadeia significante,
permitir com que se continue jogando o “jogo do sentido”. É só então que
podemos falar de uma transgressão que “terá havido” quando do assassinato do
pai. Diante da verdade em sua face
medusante, o neurótico cria. Estamos diante do paradoxo em que Lei,
desejo e gozo se articulam.
E
como ao abordar de frente à verdade precisamos sempre de alguma proteção que
nos impeça de cegar, recorramos mais uma vez ao poeta, para que ele contornando
o impossível com suas palavras, nos permita o véu da beleza:
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
(Manoel de Barros,
1993)
REFERÊNCIAS
BARROS, M. O livro das ignorãças. 3ªed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
___________. Livro sobre Nada.
Rio de Janeiro: Record, 1996
DELEUZE, G. A Lógica do Sentido. Perspectiva: São
Paulo, 1974.
FREUD,
S. (1888-1893). Cartas
a Fliess – cartas 64 e 71. In: Obras Completas, Ed Standard Brasileira, vol. I,
Rio de Janeiro, Imago, 1980.
FREUD,
S. Totem e Tabu (1912-14). In: Obras Completas, Vol. 11. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
LACAN, J. O
Seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Rio
de Janeiro,
Zahar Ed., 1999.
_________. O
Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de
Janeiro,
Zahar Ed., 1991
_________. O
Triunfo da Religião, precedido de Discurso aos Católicos (1960). Rio de
Janeiro: Zahar, 2005.
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