quinta-feira, 7 de julho de 2011

Uma mulher normal

Saiu de casa naquele dia sem saber para onde. Laura não era afeita a esses arroubos. Muito ao contrario, conhecia sua rotina tão bem quanto aquela rua por onde agora seguia. Mas nesse dia não, precisava se perder. Apesar de transportar a passos tímidos essa idéia incrustada na cabeça, tudo que conseguiu fazer foi atravessar a rua e, chegando à vendinha da esquina, dizer: dois pães, por favor. Na verdade só comeria um, mas só de pensar que aquele homem saberia que na sua casa havia apenas uma boca que era a dela... Pegou o embrulho e voltou para casa.
Todos os dias acordava cedo, comprava pão, regava as plantas com o olhar perdido nalgum ponto distante enquanto aguardava o apito da chaleira gritar impaciente trazendo-a de volta à realidade. Não sabe bem quando começou a ser assim, mas em algum passado, que agora lhe parece uma eternidade, se afeiçoou por colecionar mesmices. Talvez como uma forma de não encontrar imprevistos. Isso era realmente algo que a incomodava.  Qualquer situação a que não soubesse prontamente responder, achar o movimento correto, a expressão adequada, qualquer coisa que fugisse a isso deixava-a levemente angustiada. A princípio levemente. Com o tempo, foi ficando cada vez mais pesado.
Enquanto despeja um pouco mais de água na samambaia cabisbaixa ao seu lado, lembra que foi convidada para o aniversário de uma colega do trabalho. Só o convite em si já era tamanha surpresa que lhe deu câimbras no estômago. Por que será que ela a convidara? Não era o tipo que se costuma querer numa festa. Calada e com uma vida sem nada que valesse uma nota num jornal de bairro, certamente não aliviaria um minuto sequer de enfado àquele que se dispusesse a sentar ao seu lado. Mas, enfim, o convite fora feito e agora lhe parecia menos ruidoso aceitar do que provocar perguntas com risinhos de canto de boca: porque será que não veio, a estranha que senta na mesa dos fundos? Na certa não tinha algo decente com que se apresentar!
E não tinha mesmo. Por isso resolveu – meio relutante se isso seria mesmo uma resolução ou uma determinação escrita em alguma lei desconhecida – sair  de casa e ir comprar um vestido que lhe permitisse entrar e sair da tal festa sem ser notada o suficiente para deixar lembranças. Mas que também não deixasse dúvidas quanto à sua aparição.
Comprar vestidos também não era algo que a agradasse. Não porque fosse difícil encontrar um modelo que lhe caísse bem. Aquele corpo que habitava até que não era feio. Peso bem distribuído, seios ainda resistindo aos efeitos da gravidade - apesar dos quarenta e poucos anos que a acompanhavam -, cintura fina e coxas roliças, herança da avó. E por cima, cobrindo tudo, uma pele alva que o olhar podia percorrer sem encontrar ali sequer uma mancha. Toda essa proporção no entanto, não o fazia mais habitável. Parecia até mais estranho, visto assim em detalhes. Pensou que era melhor parar de pensar antes que desistisse. Pegou a bolsa, bateu a porta sem olhar para trás e dirigiu-se ao ponto de ônibus.
Enquanto aguardava na parada, pensava na sua vida certa. Trabalhava como revisora numa editora pouco conhecida. Tão pouco conhecida como os escritores que ali encomendavam seus livros. Mas era neles que encontrava recheio para seus dias. Deliciava-se quando recebia um novo exemplar entre as mãos, menos por seu conteúdo literário e mais pela chance que teria de riscar, rascunhar, apontar erros de pontuação e gramática, naquelas frases que pediam para ser torturadas.  E assim, entre vírgulas e travessões, ia atravessando o texto de suas dias sem exclamação.
Agradava-lhe a rotina mesclada suavemente pelas novidades que cada livro lhe trazia. Mas orgulho mesmo tinha era do certificado pendurado na parede ao lado da mesa de trabalho, única pista a denunciar quem ocupava aquele cantinho da firma. Ali podia-se ler em letras “Monotype Corsiva: Certificamos que Laura Mendes participou na qualidade de membro da comissão de estudo especial da Associação Brasileira de Normas Técnicas para normatização de citação de documentos.  Foi um trabalho duro, porém gratificante. Afinal, todo escritor que doravante pretendesse citar outra obra, teria que irremediavelmente passar pela dela. Enquanto o ônibus percorria seu trajeto, gostava de ficar relembrando trechos da tal norma: “As citações diretas, no texto, de até três linhas, devem estar contidas entre aspas duplas. As aspas simples são utilizadas para indicar citação no interior da citação”. Exemplo: "Não se mova, faça de conta que está morta."
Antes que pudesse concluir o pensamento, sentiu o corpo ser levemente empurrado para a frente e seu deu conta de que havia chegado ao fim da linha. Mas então passara do ponto e não percebera? Havia atravessado a cidade. A rua comercial onde esperava encontrar um vestido já ficara para trás. À sua frente só uma antiga zona portuária que agora era ocupada por bêbados e outros desocupados. Desceu do ônibus ainda sem entender muito bem o que se passava. Tinha passado do ponto, isso era certo. O que sobrou de certo, no entanto, já não bastava para manter o tênue fio da realidade.
Pensou na sua vida sem imprevistos. Pensou no vestido que precisava comprar, pensou na amiga e no convite. Precisava comprar um vestido. Era isso.  Para quem? A costela herdada respondia pelo osso e isso não era tudo. “O recurso tipográfico utilizado para destacar o elemento título deve ser uniforme em todas as referências de um mesmo documento.” Andava pelas ruas que fediam a mijo, andava mais rápido como quem fugia sem poder olhar para trás. Estátua de sal. A respiração ofegante descompassava o ritmo das batidas do coração. “As referências devem obedecer aos padrões indicados para os documentos monográficos no todo, acrescidas das informações relativas à descrição física do meio.” O rosto ardendo em brasa. Avistou ao longe dois homens que a olhavam com insistência. “Os elementos essenciais estão estritamente vinculados ao suporte documental e variam, portanto, conforme o tipo”. 
Perdida naquelas ruas sem objetivos nem definições, apagou.


11 comentários:

  1. Acabei de ler o seu conto e me lembrei do primneiro que escrevi, já retirado e aposentado. Que diferença! Aliás, nem é diferença, pois o meu, conto não era. Se eu tiver chegado onde penso que cheguei (nem muito lá, nem muito cá, apenas médio, mas não medíodre), você vai longe; muito longe. Guarde o conto e o comentário. Depois confira.

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  2. Muito bom, gostei muito. Esperando os próximos!
    Já estou seguindo. Aliás, fui a primeira seguidora! ^^

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  3. Seja bem-vindo este espaço para se lê o que Lia escreve. Conte desde já com um leitor assíduo.

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  4. Bicha réia faz um blog e nem me avisa. kkkkkk
    Ah, ladrona!!!

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  5. o problema da laura mendes (sim! ela tinha um problema!) é que ela não cabia num belo vestido de femininas, fortes e lispectorianas bolinhas vermelhas e não sabia cultivar arbustos enraizados no chão de casa... tola!

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  6. Uma das maiores fogueiras que pulei na vida foi não ter publicado livros ATÉ 2010. Se estes três que saem agora forem um CRIME, pelo menos há um ÁLIBI; SÃO TODOS PREMIADOS. A CULPA, PORTANTO, NÃO É MINHA.. Muito obrigado, Meu Deus, por não me ter deixado cometer este suicídio. Meu resto de vida seria uma tremenda vergonha; um tormento.. Por mais que eu me esforçasse, não conseguiria capturar todas a porcarias para "penicar" e queimar. O que jamais seria o caso da minha primogênita se publicasse livros somente com contos do quilate deste "Uma mulher normal". Tão lispectoriano que a mestra deve estar feliz e orgulhosa. Onde quer que se encontre!

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  7. Nascer na mesmice, viver na mesmice, ser sufocado pela mesmice e, então, sucumbir... De tanto viver no padrão, acabou achando o melhor lugar para apagar, o cheiro de mijo, aquela que sempre obedeceu às normas, ali deitada ao relento de dois homens que a observam estranhamente, talvez ela assuma o risco ou somente risque o final da história depois dizendo que não condizia às normas.

    Enfim, ótima crítica, ótimo conto, perfeita metáfora.

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  8. belo comentário Mardhem. Um conto é legal porque se abre para várias leituras, todas elas possiveis.
    abraços
    Lia

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  9. Mae, sei que nunca foi sua intençao, mas algo me diz que este blog ainda ira render um livro!

    P.S: Desculpe a falta de acentos! rs

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  10. um conto bem contado faz a alegria de um dia sem aspas. beijo lialinda.

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  11. CLARO QUE VAI RENDER MUITOS LIVROS, LUCAS. Quem tem o que dizer jamais ficará inédito.
    Eu desconfiava muito da minha capacidade de "ter o que dizer", por isso, só publiquei(caram) meu 1º livro em 2010. Mas estou tranquilo porque tenho um álibi: é um livro premiado.

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