sábado, 13 de setembro de 2014

A questão da técnica, o estatuto do sujeito e o lugar do objeto em psicanálise




Uma disciplina intitulada “Teorias e Técnicas Psicoterápicas” que se pretenda “psicanalítica” coloca, desde saída, alguns problemas que merecem ser examinados.
Em primeiro lugar, porque esse título traz, em si embutida, a ideia que marca o pensamento moderno de que o saber se acumula em um arsenal teórico cientificamente respaldado que, posteriormente vai poder ser aplicado na prática, devidamente instrumentalizado. Ou seja, através da acumulação do saber científico eu tenho como ter de antemão um determinado corpo de saber que me permitiria intervir para obter determinado efeito esperado.
É essa a visão presente, por exemplo, no currículo da graduação em psicologia, em que o aluno passa alguns semestres acumulando um saber teórico para, em seguida, realizar o seu estágio clínico em um “Serviço de Psicologia Aplicada", ou seja, um lugar onde ele irá aplicar a técnica.
No entanto, essa forma de pensar a técnica como uma mera instrumentalização merece ser questionada, principalmente quando se trata das disciplinas que compõem o campo "psi". Especialmente porque nesse campo, não é raro surgir a angústia do lado daquele que aplica a técnica, exatamente por sentir que o conjunto teórico de saberes que ele acumulou não é suficiente ou nem mesmo adequado para permiti-lhe intervir, ficando a incômoda sensação de farsa.
Além disso, vale a pena resgatar o comentário de Bukowski (1987) em uma entrevista dada a Sean Penn e que toca em cheio na fragilidade que perpassa a intervenção clínica pautada nesse modelo:
“Creio que o problema entre psiquiatria e seu paciente é que o psiquiatra atua de acordo com o livro, ainda que o paciente chegue pelo que a vida lhe fez. E mesmo que o livro possa ter certa astúcia, as páginas sempre são as mesmas e cada paciente é diferente. Existem muito mais problemas individuais que páginas.”
Sim, existem muito mais problemas individuais que páginas! No entanto, esse pensamento que está na base da organização da psiquiatria e da psicologia contemporânea tenta classificar o que "chega pela vida" em páginas dos livros". Essa estrutura é fundada naquilo que ficou conhecido na história como “momento cartesiano”, marcado pelo cogito de Descartes: penso, logo existo. Ou seja, há uma possibilidade de amarrar a garantia do ser em algo que é formulado pelo pensamento.
Mas é naquilo que recebemos na prática clínica que esse fundamento é mais questionado, pois aquilo com que lidamos é geralmente perpassado por um saber que não se basta, não se garante pela páginas dos livros nem em todo o saber teórico organizado.
E é aí que, no final das contas, fica a pergunta: de onde tirar a matéria por onde iremos intervir? Devo buscar nas minhas experiências pessoais, nos meus preconceitos, nas minhas experiências de vida? Mas como, se muitas vezes sou eu o sujeito angustiado reduzido frente a um discurso que me objetifica como mero depositário de um saber pré-fabricado, do qual eu em nada participo?
A angústia de introduzir esses questionamentos pode ser imobilizante, talvez por isso mesmo ela seja tão pouco abordada na universidade. Mas nossa proposta é que possamos avançar essas questões, ao invés de ignorá-las.
Partamos então da “Questão da Técnica”. Esse na verdade é o título de um texto muito interessante de Martin Heidegger, onde ele vai questionar as definições mais conhecidas de “técnica”: aquela que diz que a técnica é “um meio para fins”; e aquela que diz que a “técnica é um fazer do homem”.
  Nesse texto, a proposta de Heidegger é questionar a técnica em sua essência que, segundo ele, não é de modo algum algo meramente técnico. Ele nos diz o seguinte:
“Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso nunca experimentaremos nossa relação para com a sua essência enquanto somente representarmos e propagarmos o que é técnico, satisfizermo-nos com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados, permaneceremos, sem liberdade, atados à ela, mesmo que a neguemos ou a confirmemos apaixonadamente. Mas de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro; pois essa representação, à qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica.”
Então, se nos mantivermos presos à técnica como algo neutro, estaremos privados de liberdade e completamente cegos diante da experiência. A técnica, portanto, deve ter algum outro fundamento que a ancore.
O filósofo então retoma as definições comumente atribuídas a técnica para questioná-las: “o que é o instrumental mesmo? Onde se situam algo como um meio e um fim?” E é aí que ele situa que, perguntarmo-nos pela questão dos meios e dos fins, coloca necessariamente em questão a função da “causa”:
“Um meio é algo pelo qual algo é efetuado e, assim, alcançado. Aquilo que tem como consequência um efeito, denominamos causa.”
Tanto o meio por onde se obtém um determinado efeito como a própria finalidade que se busca alcançar colocam em função a questão da causa. E aí, já não estamos mais no terreno da pura técnica, mas já adentramos em um outro que é aquele da Ética. Veremos porquê.
Quando ouvimos o significante “causa”, dentro do modelo científico, ele nos remete imediatamente a conhecida relação de causa e efeito. No campo da clínica, por exemplo, há muito se questiona acerca da “causa” das doenças, dos transtornos, dos distúrbios. Mas o que se oculta nessa interrogação é que ela já é fundamentada por uma outra vertente da “causa”: “a causa pela qual se luta, a causa que se defende e pela qual se pode até morrer. Trata-se da causa que norteia uma vida.” (Quinet, A. A estranheza da Psicanálise, 2003, P. 27)
Aqui já é preciso dizer que trouxemos para o debate um outro campo, aquele da política. A indústria farmacêutica que financia as pesquisas chamadas “clínicas” sustenta uma “causa”. O sujeito que padece de um sofrimento, também sustenta a sua.Isso porque, como nos diz Heidegger, a causa e o que ela ocasiona tem a ver com o que a cada vez aparece no produzir, e o que aparece no produzir é a verdade que o sustenta:  
“O produzir leva do ocultamento para o descobrimento. O trazer à frente somente se dá na medida em que algo oculto chega ao desocultamento. Este surgir repousa e vibra naquilo que denominamos o desabrigar (Entbergen). Os gregos têm para isso a palavra “aletheia”. Os romanos a traduzem por “veritas”. Nós dizemos “verdade” e a compreendemos costumeiramente como a exatidão da representação. (...) Por onde nos perdemos? Questionamos a técnica e agora aportamos na aletheia, no desabrigar. O que a essência da técnica tem a ver com o desabrigar? Resposta: tudo. Pois no desabrigar se fundamenta todo produzir. (...) A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á para nós um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade.”
Assim, perguntar sobre os meios para se chegar a um fim, não é uma questão meramente técnica, mas também ética e política. Chagamos portanto a uma relação entre técnica, causa e verdade, que passaremos a explorar.
Há séculos, diz-nos Heidegger, a filosofia ensina que há quatro causas:
  1. a causa materialis, o material, a matéria a partir da qual, por exemplo, uma taça de prata é feita;
  2. a causa formalis, a forma, a figura, na qual se instala o material;
  3. a causa finalis, o fim, por exemplo, o sacrifício para o qual a taça requerida é determinada segundo matéria e forma; 
  4. a causa efficiens, o forjador da prata que efetua o efeito, a taça real acabada. 

          Na verdade essas quatro dimensões da causa foram elaboradas por Aristóteles, há mais de 300 anos a.C. Em um texto intitulado “A Ciência e a Verdade”, Lacan vai examinar os campos do saber que se organizaram na história da humanidade a partir da causa e da verdade que está em jogo em cada um deles: a magia, a religião e a ciência. E, a partir daí, vai poder situar a especificidade da psicanálise em situação de ex-centricidade em relação a esses outros campos
a) a magia é a verdade como causa sob seu aspecto de causa eficiente. Isso porque a verdade está no agente que é o xamã, cujo corpo ele empresta ao mito, sustentando o ritual por onde a verdade se processa. (Quinet, 2003, p 31). “Ela supõe o significante respondendo como tal ao significante. O significante na natureza é invocado pelo significante no encantamento. É metaforicamente mobilizado. A Coisa, na medida que fala, responde a nossas objurgações.”(Lacan, 1966, p.885). Trovão, chuva, meteoros e milagres, é assim que aparece aquilo que o xamã mobiliza na natureza, mas essa é uma forma de relação com a causa que negligencia a verdade do sujeito. Esconde-se aí que a preparação do sujeito em sua relação com a verdade é imprescindível para que ele possa operar com seus poderes. Ele precisa se purificar, entrar em contato com a natureza, etc.
b) Na religião, trata-se da verdade como causa final: “o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso a verdade. Por isso é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício. Sua demanda é submetida ao desejo suposto de um Deus que , por conseguinte, é preciso seduzir. O jogo do amor entra por ai.
c)  Na ciência, o que ocorre é que, da verdade como causa, ela nada quer saber nada, centrando-se inteiramente na causa formal. A questão do saber e da verdade são reduzidas à questão do método, das formas, e nada mais do lado do sujeito precisa ser questionado, como por exemplo, o desejo do pesquisador... Falaremos um pouco mais dessa modalidade de saber.
A ciência progride pela vontade de potência de domínio sobre o real. Encontrar as respostas para tudo aquilo que se atravessa em nossa história como enigma, obstáculo, e no limite, para a própria morte. No entanto, esse progresso científico é balizado muito mais pelos novos obstáculos que cada teorização encontra, do que pelos próprios avanços obtidos. Essa é a tese de Koyré, filósofo como quem Lacan irá dialogar, mas que podemos encontrar de alguma maneira também nas formulações de Popper e Kuhn.
“Na perspectiva de Koyré, o obstáculo e inerente a produção do conceito, e por extensão, à elaboração do saber da ciência. Até porque o tal ‘obstáculo’ não faz mais do que revelar o impensável de uma época. Em consequência, acaba por mostrar o limite da axiomática na qual se insere. Donde se depreende que, para ele, o impensável em uma axiomática – em uma época dada – indica o advento de uma nova dimensão e aponta o surgimento da axiomática seguinte.” (CABAS, G.A. 2003, p.200)
 No entanto, o curioso do discurso científico é que, desses limites com os quais ele vai se deparando (e que constituem sua verdade), ele não quer saber nada. Ele foraclui a verdade como causa, assim como sutura o sujeito eliminando a questão do seu desejo.
É assim que a ciência moderna nasce por um movimento que elimina as relações do sujeito com a verdade, por uma valorização do “como funciona”, em detrimento do “qual o agente” ou “qual a finalidade” de uma ação. Enquanto que no pensamento teocêntrico, Deus era o eixo central enquanto causa final, as leis do pensamento científico são uma espécie de causa formal, onde não interessa a intenção do agente nem seus porquês.
 É interessante observarmos que, ao mesmo tempo em que cria as condições para o surgimento do sujeito (antes do momento cartesiano, o único agente do universo era Deus), o nascimento da ciência moderna expulsa de suas condições de possibilidade exatamente tudo que diz respeito a esse sujeito. Isso porque, a partir daí, nada do “ser de sujeito” do cientista participa dessa produção do conhecimento. Pelo contrário, espera-se dele a máxima neutralidade. Como diz Lacan no seminário 11, ninguém se pergunta sobre o desejo do Físico!
Daí porque Lacan vai afirmar que o sujeito da psicanálise é o mesmo sujeito da ciência. Antes da ciência moderna, não haveria possibilidade de surgimento da psicanálise pois a questão da “causa” era totalmente atribuída a Deus. Além disso, podemos dizer que a psicanálise nasce de um dos obstáculos encontrados pela ciência positivista: é Freud, encontrando as histéricas de Salpetriêre que se constituíam em um limite para o saber cientifico, não respondiam a ele, não se encaixavam em suas premissa.
Assim, seguindo a tese de Koyré, seria a psicanálise uma ciência, já que nasce do encontro de um obstáculo de uma axiomática anterior? Poderia até ser, se não fosse o fato de que a psicanálise já nasce subvertendo a lógica do discurso científico. Ocorre que Freud, ao se questionar sobre a histeria, não o fez sob os moldes de um observador externo ao objeto estudado. O que a psicanálise sustenta é que o “sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto. ”(Lacan, 1966, p. 875).
Foi através da análise de seus próprios sonhos que Freud avançou no terreno da histeria. Isso porque ele propôs uma outra fundamentação para o saber. Frente a nossa pergunta inicial: onde vou poder buscar a matéria por onde vou intervir na clínica? Freud respondeu: com seu próprio saber inconsciente. Isso porque o que ele descobre é que o sintoma tem um sentido, uma lógica a ser decifrada: isso fala! É portanto no próprio texto inconsciente que se manifesta através dos lapsos, sonhos chistes, que a verdade do sujeito deve ser buscada.
Ou seja, a psicanálise, nas exposição das causas aristotélicas, opera de forma diferente tanto da magia (que se encontra na clínica sob a forma de sugestão) como da religião e da ciência. A psicanálise reintroduz no campo do saber a relação do sujeito com seu desejo, ou seja, com sua verdade.
 Mas aí, ela opera uma subversão tão grande, que não é mais possível pensarmos a questão da formação como algo que se dá nos bancos de uma universidade. Não podemos mais esperar de uma acumulação do saber, que foraclui o sujeito, as bases para que ela possa intervir segundo uma técnica.
É preciso que o próprio sujeito vá se interrogar sobre o seu desejo, que ele possa ter acesso a sua própria verdade e às fixões[1]. E a verdade para a psicanálise tem uma especificidade. Não se trata de uma verdade transcendente, absoluta, universal. Trata-se de uma verdade particular, um “fato de memória”: “lembrar os obstáculos que precederam a conquista de um saber – o que Lacan denomina ‘a verdade enquanto causa’- é o que o discurso analítico define como ‘lembrança da castração’. (CABAS, G. 2003, p. 212)
É isso que a ciência não considera, a memória dos obstáculos, e que a psicanálise vai resgatar.
O neurótico é alguém que, ao se deparar com um obstáculo, constitui uma ‘axiomática’ para responder pelo que ele é, pelo lugar do Outro e pelo que ele entende do mundo em si. Só que essa construção o fixa a uma realidade em que ele é sempre objeto do gozo do Outro; em que ele repete uma situação em que ele sofre com seu sintoma, mas com isso goza de uma satisfação que mal se reconhece como tal.
Na clínica a consideração desses princípios implica reconhecer que a conduta do terapeuta de forma alguma pode ser reduzida a uma “escolha da abordagem” teórica ou do aprendizado de técnicas, mas implica em um dimensão do saber inconsciente que só pode ser acessado através da análise.
 Assim, falar da técnica exige necessariamente que falemos da (de)formação necessária para aquele que vai exercê-la, e isso não pode ser pensado separadamente de uma ética e de uma política. Isso é o que veremos na próxima aula.  
Referências
  • Bukowski, C. (1987). (Entrevista com Sean Penn, ator e poeta). Recuperado em 20 outubro, 2011, de http://bukowski.net/poems/int2.php 
  • CABAS, A. G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do sujeitoao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.  
  • Heidegger, M. A Questão da Técnica (1953). Revista Scientiæ zudia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007. Disponível em www.revistas.usp.br/ss/article/download/1111AS
  • LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1965-66). In:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
  • QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p.124-129.








[1] Neologismo criado por Lacan que junta ficções e aquilo que se fixa