Uma disciplina
intitulada “Teorias e Técnicas Psicoterápicas” que se pretenda “psicanalítica”
coloca, desde saída, alguns problemas que merecem ser examinados.
Em primeiro lugar,
porque esse título traz, em si embutida, a ideia que marca o pensamento moderno
de que o saber se acumula em um arsenal teórico cientificamente respaldado que,
posteriormente vai poder ser aplicado na prática, devidamente
instrumentalizado. Ou seja, através
da acumulação do saber científico eu tenho como ter de antemão um determinado
corpo de saber que me permitiria intervir para obter determinado efeito
esperado.
É essa a visão
presente, por exemplo, no currículo da graduação em psicologia, em que o aluno passa
alguns semestres acumulando um saber teórico para, em seguida, realizar o seu
estágio clínico em um “Serviço de Psicologia Aplicada", ou seja, um lugar onde
ele irá aplicar a técnica.
No entanto, essa
forma de pensar a técnica como uma mera instrumentalização merece ser
questionada, principalmente quando se trata das disciplinas que compõem o campo
"psi". Especialmente porque nesse campo, não é raro surgir a angústia
do lado daquele que aplica a técnica, exatamente por sentir que o conjunto
teórico de saberes que ele acumulou não é suficiente ou nem mesmo adequado para
permiti-lhe intervir, ficando a incômoda sensação de farsa.
Além disso, vale
a pena resgatar o comentário de Bukowski (1987) em uma entrevista dada a Sean Penn e
que toca em cheio na fragilidade que perpassa a intervenção clínica pautada
nesse modelo:
“Creio que o problema entre psiquiatria e seu paciente é que o psiquiatra atua de acordo com o livro, ainda que o paciente chegue pelo que a vida lhe fez. E mesmo que o livro possa ter certa astúcia, as páginas sempre são as mesmas e cada paciente é diferente. Existem muito mais problemas individuais que páginas.”
Sim,
existem muito mais problemas individuais que páginas! No entanto, esse
pensamento que está na base da organização da psiquiatria e da psicologia
contemporânea tenta classificar o que "chega pela vida" em páginas dos livros". Essa estrutura é fundada naquilo que ficou conhecido na história como “momento
cartesiano”, marcado pelo cogito de Descartes: penso, logo existo. Ou seja, há
uma possibilidade de amarrar a garantia do ser em algo que é formulado pelo
pensamento.
Mas é naquilo que recebemos na prática clínica que esse fundamento é mais
questionado, pois aquilo com que lidamos é geralmente perpassado por um saber
que não se basta, não se garante pela páginas dos livros nem em todo o saber
teórico organizado.
E
é aí que, no final das contas, fica a pergunta: de onde
tirar a matéria por onde iremos intervir? Devo buscar nas minhas experiências
pessoais, nos meus preconceitos, nas minhas experiências de vida? Mas como, se
muitas vezes sou eu o sujeito angustiado reduzido frente a um discurso que me
objetifica como mero depositário de um saber pré-fabricado, do qual eu em nada
participo?
A angústia de
introduzir esses questionamentos pode ser imobilizante, talvez por isso mesmo
ela seja tão pouco abordada na universidade. Mas nossa proposta é que possamos
avançar essas questões, ao invés de ignorá-las.
Partamos então da “Questão da Técnica”. Esse na verdade é o
título de um texto muito interessante de Martin Heidegger, onde ele vai
questionar as definições mais conhecidas de “técnica”: aquela que diz que a
técnica é “um meio para fins”; e aquela que diz que a “técnica é um fazer do
homem”.
Nesse
texto, a proposta de Heidegger é questionar a técnica em sua essência que,
segundo ele, não é de modo algum algo meramente técnico. Ele nos diz o seguinte:
“Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso nunca experimentaremos nossa relação para com a sua essência enquanto somente representarmos e propagarmos o que é técnico, satisfizermo-nos com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados, permaneceremos, sem liberdade, atados à ela, mesmo que a neguemos ou a confirmemos apaixonadamente. Mas de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro; pois essa representação, à qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica.”
Então, se nos
mantivermos presos à técnica como algo neutro, estaremos privados de liberdade
e completamente cegos diante da experiência. A técnica, portanto, deve ter
algum outro fundamento que a ancore.
O filósofo então
retoma as definições comumente atribuídas a técnica para questioná-las: “o que
é o instrumental mesmo? Onde se situam algo como um meio e um fim?” E é aí que ele situa
que, perguntarmo-nos pela questão dos meios e dos fins, coloca necessariamente em
questão a função da “causa”:
“Um meio é algo pelo qual algo é efetuado e, assim, alcançado. Aquilo que tem como consequência um efeito, denominamos causa.”
Tanto o meio por
onde se obtém um determinado efeito como a própria finalidade que se busca
alcançar colocam em função a questão da causa.
E aí, já não estamos mais no terreno da pura técnica, mas já adentramos em um
outro que é aquele da Ética. Veremos
porquê.
Quando ouvimos o
significante “causa”, dentro do modelo científico, ele nos remete imediatamente
a conhecida relação de causa e efeito. No campo da clínica, por exemplo, há
muito se questiona acerca da “causa” das doenças, dos transtornos, dos
distúrbios. Mas o que se oculta nessa interrogação é que ela já é fundamentada
por uma outra vertente da “causa”: “a causa pela qual se luta, a causa que se
defende e pela qual se pode até morrer. Trata-se da causa que norteia uma
vida.” (Quinet, A. A estranheza da Psicanálise, 2003, P. 27)
Aqui já é preciso
dizer que trouxemos para o debate um outro campo, aquele da política. A indústria farmacêutica que
financia as pesquisas chamadas “clínicas” sustenta uma “causa”. O sujeito que
padece de um sofrimento, também sustenta a sua.Isso porque, como
nos diz Heidegger, a causa e o que ela ocasiona tem a ver com o que a cada vez aparece no produzir, e o que
aparece no produzir é a verdade que
o sustenta:
“O produzir leva do ocultamento para o descobrimento. O trazer à frente somente se dá na medida em que algo oculto chega ao desocultamento. Este surgir repousa e vibra naquilo que denominamos o desabrigar (Entbergen). Os gregos têm para isso a palavra “aletheia”. Os romanos a traduzem por “veritas”. Nós dizemos “verdade” e a compreendemos costumeiramente como a exatidão da representação. (...) Por onde nos perdemos? Questionamos a técnica e agora aportamos na aletheia, no desabrigar. O que a essência da técnica tem a ver com o desabrigar? Resposta: tudo. Pois no desabrigar se fundamenta todo produzir. (...) A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á para nós um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade.”
Assim, perguntar
sobre os meios para se chegar a um fim, não é uma questão meramente técnica,
mas também ética e política. Chagamos portanto a uma relação entre técnica,
causa e verdade, que passaremos a explorar.
Há séculos,
diz-nos Heidegger, a filosofia ensina que há quatro causas:
- a causa materialis, o material, a matéria a partir da qual, por exemplo, uma taça de prata é feita;
- a causa formalis, a forma, a figura, na qual se instala o material;
- a causa finalis, o fim, por exemplo, o sacrifício para o qual a taça requerida é determinada segundo matéria e forma;
- a causa efficiens, o forjador da prata que efetua o efeito, a taça real acabada.
Na verdade essas
quatro dimensões da causa foram elaboradas por Aristóteles, há mais de 300 anos
a.C. Em um texto
intitulado “A Ciência e a Verdade”, Lacan vai examinar os campos do saber que
se organizaram na história da humanidade a partir da causa e da verdade que
está em jogo em cada um deles: a magia, a religião e a ciência. E, a partir daí,
vai poder situar a especificidade da psicanálise em situação de ex-centricidade
em relação a esses outros campos
a) a magia é a verdade como causa sob
seu aspecto de causa eficiente. Isso porque a verdade está no agente que é o
xamã, cujo corpo ele empresta ao mito, sustentando o ritual por onde a verdade
se processa. (Quinet, 2003, p 31). “Ela supõe o significante respondendo como
tal ao significante. O significante na natureza é invocado pelo significante no
encantamento. É metaforicamente mobilizado. A Coisa, na medida que fala,
responde a nossas objurgações.”(Lacan, 1966, p.885). Trovão, chuva, meteoros e
milagres, é assim que aparece aquilo que o xamã mobiliza na natureza, mas essa
é uma forma de relação com a causa que negligencia a verdade do sujeito. Esconde-se
aí que a preparação do sujeito em sua relação com a verdade é imprescindível
para que ele possa operar com seus poderes. Ele precisa se purificar, entrar em
contato com a natureza, etc.
b) Na religião, trata-se da verdade
como causa final: “o religioso entrega a Deus a incumbência da causa, mas nisso
corta seu próprio acesso a verdade. Por isso é levado a atribuir a Deus a causa
de seu desejo, o que é propriamente o objeto do sacrifício. Sua demanda é
submetida ao desejo suposto de um Deus que , por conseguinte, é preciso
seduzir. O jogo do amor entra por ai.
c) Na ciência, o que ocorre é que, da
verdade como causa, ela nada quer saber nada, centrando-se inteiramente na
causa formal. A questão do saber e da verdade são reduzidas à questão do
método, das formas, e nada mais do lado do sujeito precisa ser questionado,
como por exemplo, o desejo do pesquisador... Falaremos um pouco mais dessa
modalidade de saber.
A ciência
progride pela vontade de potência de domínio sobre o real. Encontrar as
respostas para tudo aquilo que se atravessa em nossa história como enigma,
obstáculo, e no limite, para a própria morte. No entanto, esse progresso
científico é balizado muito mais pelos novos obstáculos que cada teorização
encontra, do que pelos próprios avanços obtidos. Essa é a tese de Koyré, filósofo
como quem Lacan irá dialogar, mas que podemos encontrar de alguma maneira
também nas formulações de Popper e Kuhn.
“Na perspectiva de Koyré, o obstáculo e inerente a produção do conceito, e por extensão, à elaboração do saber da ciência. Até porque o tal ‘obstáculo’ não faz mais do que revelar o impensável de uma época. Em consequência, acaba por mostrar o limite da axiomática na qual se insere. Donde se depreende que, para ele, o impensável em uma axiomática – em uma época dada – indica o advento de uma nova dimensão e aponta o surgimento da axiomática seguinte.” (CABAS, G.A. 2003, p.200)
No entanto, o
curioso do discurso científico é que, desses limites com os quais ele vai se
deparando (e que constituem sua verdade), ele não quer saber nada. Ele foraclui
a verdade como causa, assim como sutura o sujeito eliminando a questão do seu
desejo.
É assim
que a ciência moderna nasce por um movimento que elimina as relações do sujeito
com a verdade, por uma valorização do “como funciona”, em
detrimento do “qual o agente” ou “qual a finalidade” de uma ação. Enquanto que
no pensamento teocêntrico, Deus era o eixo central enquanto causa final, as leis do pensamento
científico são uma espécie de causa
formal, onde não interessa a intenção do agente nem seus porquês.
É interessante observarmos que,
ao mesmo tempo em que cria as condições para o surgimento do sujeito (antes do
momento cartesiano, o único agente do universo era Deus), o nascimento da
ciência moderna expulsa de suas condições de possibilidade exatamente tudo que
diz respeito a esse sujeito. Isso porque, a partir daí, nada do “ser de
sujeito” do cientista participa dessa produção do conhecimento. Pelo contrário,
espera-se dele a máxima neutralidade. Como diz Lacan no seminário 11, ninguém
se pergunta sobre o desejo do Físico!
Daí porque Lacan vai
afirmar que o sujeito da psicanálise é o mesmo sujeito da ciência. Antes da
ciência moderna, não haveria possibilidade de surgimento da psicanálise pois a
questão da “causa” era totalmente atribuída a Deus. Além disso, podemos dizer
que a psicanálise nasce de um dos obstáculos encontrados pela ciência
positivista: é Freud, encontrando as histéricas de Salpetriêre que se
constituíam em um limite para o saber cientifico, não respondiam a ele, não se
encaixavam em suas premissa.
Assim, seguindo a tese
de Koyré, seria a psicanálise uma ciência, já que nasce do encontro de um
obstáculo de uma axiomática anterior? Poderia até ser, se não fosse o fato de
que a psicanálise já nasce subvertendo a lógica do discurso científico. Ocorre
que Freud, ao se questionar sobre a histeria, não o fez sob os moldes de um
observador externo ao objeto estudado. O que a psicanálise sustenta é que o
“sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto.
”(Lacan, 1966, p. 875).
Foi através da análise
de seus próprios sonhos que Freud avançou no terreno da histeria. Isso porque
ele propôs uma outra fundamentação para o saber. Frente a nossa pergunta
inicial: onde vou poder buscar a matéria por onde vou intervir na clínica?
Freud respondeu: com seu próprio saber inconsciente. Isso porque o que ele
descobre é que o sintoma tem um sentido, uma lógica a ser decifrada: isso fala!
É portanto no próprio texto inconsciente que se manifesta através dos lapsos,
sonhos chistes, que a verdade do sujeito deve ser buscada.
Ou seja, a psicanálise,
nas exposição das causas aristotélicas, opera de forma diferente tanto da magia
(que se encontra na clínica sob a forma de sugestão) como da religião e da
ciência. A psicanálise reintroduz no campo do saber a relação do sujeito com
seu desejo, ou seja, com sua verdade.
Mas aí, ela opera uma subversão tão grande, que não é
mais possível pensarmos a questão da formação como algo que se dá nos bancos de
uma universidade. Não podemos mais esperar de uma acumulação do saber, que
foraclui o sujeito, as bases para que ela possa intervir segundo uma técnica.
É preciso que o próprio
sujeito vá se interrogar sobre o seu desejo, que ele possa ter acesso a sua
própria verdade e às fixões[1]. E
a verdade para a psicanálise tem uma especificidade. Não se trata de uma
verdade transcendente, absoluta, universal. Trata-se de uma verdade particular,
um “fato de memória”: “lembrar os obstáculos que precederam a conquista de um
saber – o que Lacan denomina ‘a verdade enquanto causa’- é o que o discurso
analítico define como ‘lembrança da castração’. (CABAS, G. 2003, p. 212)
É isso que a ciência não
considera, a memória dos obstáculos, e que a psicanálise vai resgatar.
O neurótico é alguém
que, ao se deparar com um obstáculo, constitui uma ‘axiomática’ para responder
pelo que ele é, pelo lugar do Outro e pelo que ele entende do mundo em si. Só
que essa construção o fixa a uma realidade em que ele é sempre objeto do gozo
do Outro; em que ele repete uma situação em que ele sofre com seu sintoma, mas
com isso goza de uma satisfação que mal se reconhece como tal.
Na clínica a consideração desses princípios implica
reconhecer que a conduta do terapeuta de forma alguma pode ser reduzida a uma “escolha
da abordagem” teórica ou do aprendizado de técnicas, mas implica em um dimensão
do saber inconsciente que só pode ser acessado através da análise.
Assim, falar da técnica
exige necessariamente que falemos da (de)formação necessária para aquele que
vai exercê-la, e isso não pode ser pensado separadamente de uma ética e de uma
política. Isso é o que veremos na próxima aula.
Referências
- Bukowski, C. (1987). (Entrevista com Sean Penn, ator e poeta). Recuperado em 20 outubro, 2011, de http://bukowski.net/poems/int2.php
- CABAS, A. G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do sujeitoao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
- Heidegger, M. A Questão da Técnica (1953). Revista Scientiæ zudia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007. Disponível em www.revistas.usp.br/ss/article/download/1111AS
- LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1965-66). In:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
- QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p.124-129.
Texto muito bom, espero que você publique a próxima aula.
ResponderExcluirObrigada , Fran! Bom que você gostou..assim que tiver outra aula escrita eu posto sim...rs
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