domingo, 31 de agosto de 2014

Lost in Translation...





 “Foi só isso? Parece que ele disse bem mais que isso...”

A fala é de Bob Harris (Bill Murray), um ator de cinema que está em Tokyo para fazer um comercial de whisky. O Diretor, japonês, fala umas vinte frases incompreensíveis para o ocidental, ao que a tradutora retruca: ele disse que quer que você se vire e olhe para a câmera. Claro que não foi só isso que ele disse. O resto ficou..lost in translation.  A frase, que dá título a esse filme belo e delicado, não poderia definir melhor o que se passa (A tradução em português - Encontros e Desencontros - não foi tão feliz assim).


Bob é um homem de meia idade, que arrasta um casamento desgastado em seus 25 anos, e com uma cara de quem preferia estar em qualquer lugar do mundo, menos no Japão. Entre as idas e vindas para a filmagem do comercial (que lhe exige uma encenação ridícula, mas que paga milhões de dólares para ele estar ali) Bob se revira no quarto do hotel, assolado pelo jet lag de 24 hs de diferença de fuso. Não é dito muita coisa, mas quem já passou uma noite tentando, em vão, dormir, sabe imediatamente do que se trata. Ele desce pro bar do hotel e lá conhece Charlotte (Scarlett Johanson) - linda, como só ela consegue ser, mas extremamente entediada. Ela está na cidade acompanhando o marido fotógrafo. Ele, veio a trabalho. Ela... ainda não está muito certa a que veio. Aliás, essa é a frase que, repetida em situações diferentes, resume sua personagem: “I’m not sure”.


Ela não está muito certa do que vai querer beber, de qual é sua profissão, do está fazendo no mundo, do que é estar casada, do que é estar consigo mesma. Assim como Bob, ela se arrasta insone entre o quarto e o bar do hotel. Nessas idas e vindas, eles se encontram. Trocam algumas palavras, não muitas. Mas parece que compartilham algo, talvez a sensação de que a vida está passando e eles não fazem ideia de como vieram parar ali.
Tokyo é uma metáfora para este “ali”. Uma metáfora belíssima, por sinal. Num dos momentos mais poéticos do filme, acompanhamos Charlotte deslocar-se de trem até Kyoto. Na viagem vemos o Monte Fuji imponente e ancestral, e a acompanhamos em um passeio num parque, onde seu olhar cruza com uma mulher ricamente adornada em trajes típicos japoneses, amparada pela mão do marido. Por um segundo, somos atravessados naquele olhar por todas as perguntas que uma mulher se faz, sobre si, sobre o amor, sobre a vida. 

Assim é a dor e a delícia de poder usar das palavras. Nunca se diz tudo. Na palavras da poeta Orides Fontela: “Tudo será difícil de dizer: a palavra real nunca é suave".  Mas, apesar desse impossível, e até por causa dele, eis que uma metáfora se faz e a poesia invade a cena.
Aquilo que nos chega da experiência, como que invadindo nosso corpo, precisa ser transcrito em outra língua, traduzido mesmo, disse Freud em sua famosa carta 52 à Fliess. E nisso que se traduz, alguma coisa resta sempre “lost in translation”. Irrecuperável, mas presente inexoravelmente cada vez que tentarmos nos dizer.
Estar sozinha em um país distante é uma forma de experimentar mais perto esse algo. Em uma experiência recente, fui tomada pela visão de um quadro que, assim como esse filme, me disse muito sobre o que é estar tão intimamente acompanhada disso que “Que dá dentro da gente e que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia”. O quadro, de Edward Hooper, se chama “Hotel Room”.  
Nele vemos uma mulher sentada na cama de um hotel qualquer. Ela se despiu, seu chapéu e suas roupas estão jogados sobre uma cadeira e ela parece cansada demais para desfazer a mala. Nas suas mãos um papel que ela examina, provavelmente o bilhete do trem que vai pegar no dia seguinte. Tal qual a Charlotte diante da gueixa da cena do filme, me vi fascinada por aquela mulher, identificada ao que ali se diz de sua situação de viajante sozinha, mas, principalmente, identificada ao que não sei dizer de mim que ela parece também portar. Enfim, seja em NovaYork, em Tokyo, em Madrid ou no interior do Ceará, tem sempre a possibilidade de encontrarmos com essa estranheza familiar.

Sofia Copolla teve um grande mérito nesse filme (mais um entre tantos): não reduziu o desconforto, o tédio, a angústia, a um encontro onde o amor resolve tudo, como é a promessa do cinema holywoodiano). Charlotte e Bob se encontram, é fato. Mas isso não elimina a estranheza. Apesar da sensação implícita de que pela primeira vez na vida conseguem estar com alguém com quem minimamente conseguem conversar, a promessa de um amor vai se arrastando. Provavelmente enquanto ele pensa na esposa e nos filhos que deixou na América, e ela no marido workaholic que não consegue ficar perto dela.
A tensão é constante, mas não há encontro físico. Eles dormem juntos porque pegam no sono conversando, mas não fazem sexo. E o único beijo do filme acontece num momento lindo, quando prestes a pegar o avião que vai levá-lo embora para longe de Charlotte, Bob sussurra algo em seu ouvido, algo que nós espectadores nunca vamos saber: lost in translation.

Fica a sensação se que algo escapou, algo está perdido. Mas é isso também que faz toda a beleza do filme e da vida. Não é que a vida valha a pena, apesar de perdermos. É exatamente porque perdemos que vale a pena seguir inventando: inventando o amor, a poesia, a vida. 

A psicanálise tem outra forma de dizer isso. Nessa mesma viagem em que encontrei Hooper, tiver a oportunidade de ouvir uma belíssima apresentação do psicanalista Antonio Quinet onde ele disse da estrangeiridade de todos nós em relação ao inconsciente, que é sempre translinguístico. Isso é, apesar da ilusão de que “é falando que a gente se entende”, estamos todos - mesmo quem nunca saiu do seu lugar natal - sempre tendo que nos virar com uma língua estrangeira. E que a tarefa do analista consiste em arrancar as palavras de sua familiaridade, permitindo que, por um lado, o sujeito se descole de suas identificações, e por outro, que aquilo que cai “lost in translation” compareça.  

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