segunda-feira, 28 de março de 2022

A passagem ao ato Hollywoodiana


 A violência não é justificável em (quase) nenhuma circunstância. Quando o homem proferiu um insulto ao invés de jogar uma pedra, fundou a civilização, já disse Freud.

Mas não é mais escândalo nenhum afirmar a precarização em que o discurso capitalista lança esses laços, reduzindo a palavra ao cinismo e o corpo a só mais um objeto de consumo.


Hollywood, queiram ou não seus agentes, é uma das peças dessa engrenagem. Nos últimos anos foi se revelando a misoginia e o racismo que grassam atrás das câmeras e que revela-se também nas premiações do Oscar, etc. 


Assustados com o que viram, os organizadores trataram de enfrentar o problema pela via identitária- o que há algum tempo já se reflete na premiação do Oscar. 


A cerimônia de ontem seguia a risca o figurino: negros, mulheres, latinos, LGBTs, todos representados nas obras indicadas, na organização do evento e na plateia. Que bom, poderíamos dizer! Hollywood está mudando. 


Mas logo na abertura uma coisa chama a atenção. Como num filme de David Linch, tem algo muito estranho quando a lente se aproxima. Amy Schumer, Wonda Sykes e Regina Hall fazem a fala inicial. As duas apresentadoras negras, dizem que estão ali representando as mulheres negras no cinema. A outra, branca, responde: “e eu estou aqui representando as brancas que ligam pra polícia quando vocês estão falando alto demais”. A plateia ri. Em seguida, elas se dirigem a um homem branco de meia idade sentado na plateia dizendo: você viu o fulano? Está acabado ele, né ? Ao que a outra responde algo como: “eu ainda pegava”.


E segue o show de horrores com acusações de incesto aos irmãos Gyllenhall, de promiscuidade a Di Caprio e outras piadas de péssimo gosto ao longo de toda a cerimônia, tudo bem recheado de auto e hetero agressividade. 


Até o momento em que Chris Rock faz mais uma dessas piadas terríveis , dessa vez sobre a falta de cabelos da de mulher de Will Smith, que levantou foi até o palco e esbofeteou o apresentador. 

A essa altura, como tem sido frequente no contexto atual, ninguém sabia mais o que era piada e o que era realidade. Infelizmente parece que não foi cena. 


Lamentável a atitude, mas 

não acho que Will seja um imbecil ou uma vítima do machismo. Ele só atuou o que a cerimônia estava a todo todo tempo pedindo. 


A lógica, apesar de montada em enunciados de inclusão, está sustentada numa enunciação que é a do ódio ao gozo (imaginado como do Outro, sem saber que é do próprio corpo que se trata).

Não podia dar mesmo noutra coisa. 


Provavelmente nem mesmo Will sabe porque agiu assim, mas, sem ter lugar para localizar a falta, o que emerge é o mais-de-gozar em sua face odiosa e que, na falta de recursos simbólicos, passa ao ato. 


Will Smith interpretou Hollywood … ainda bem que foi só um tapa. Podia ter sido bem pior.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Está oficialmente decretado o fim do mundo


Todo mundo já sabia, o mundo acabou faz tempo. Nos últimos anos acabaram-se várias conquistas democráticas, acabou-se o prazer ingênuo de tomar um chopp na calçada, de encontrar os amigos sem culpa. Acabou-se o dinheiro de papel, a comida no restaurante, as aulas presenciais. Acabou-se a mídia impressa, o jornal das oito, a campanha política com santinho. 
 
Nem todas essas coisas vão fazer falta, algumas já vão tarde, na verdade. Mas hoje, a morte de Elza Soares materializou simbolicamente esse sentimento de luto.  Ela que disse que ia cantar até o fim, se calou. E o fim do mundo chegou. “It's the end of the world as we know it”… como diz outra canção.

Mas Elza também foi a mulher que enfrentou a pobreza, a discriminação, a violência e.. renasceu, recriou-se. Como uma espécie de Benjamin Button, rejuvenesceu a medida que os anos se passavam. Incorporou o rap ao samba e nos surpreendeu com uma música fresca, jovem e ao mesmo tempo, com um tempero de maturidade. Quando gravou o álbum “A Mulher do fim do mundo” obviamente já sabia que o fim estava próximo.. mas era tanta força , tanto desejo, que ela esticou ainda uns anos. E no dia do show homônimo ela tava lá, sentada numa cadeira de rainha. Um corpo já quase morto, não ficava mais de pé. Mas quando abriu a boca se via que ele era habitado por um sujeito cheio de desejo, insistindo em viver. E ela botou pra fuder! Aquela voz parecia saindo do centro da terra como um vulcão. Muita emoção…
 
Beleza, mana. Fica com Deus!.. a gente que continua fica com a responsa de inventar outro mundo e nele vai ter uma pedrinha do que você nos deixou.

Lia Silveira