domingo, 22 de março de 2015

Os Labirintos da Falta e as Tramas por Onde Advém o Sujeito

 A pergunta sobre a origem não é nova na história da humanidade. Provavelmente, desde que há pensamento, há ali também a pergunta sobre a origem. De Gaia e Urano, passando por Adão e Eva até as teorias evolucionistas de hoje, todo um saber foi sendo elaborado para tentar dar conta do que constitui aquilo que é. O ser, a substância e o que o causa tem sido temas caros também à filosofia.

A psicanálise também vai se interessar por esta pergunta, não no sentido de uma metafísica, mas na medida em que Freud assume que não há, desde o início de cada vida que vem ao mundo, algo que responda como um sujeito. Para tanto, faz-se necessário todo um movimento, mas esse movimento que gira em torno da função estruturante da falta. Daí que Lacan vai afirmar que, nada na experiência psicanalítica, pode ser elaborado se não considerarmos a função da falta.

A elaboração da falta na experiência psicanalítica
Teoricamente, podemos tomar essa elaboração sobre a falta na constituição do sujeito por das vertentes: a vertente da falta de objeto e a vertente da falta fálica.

Em Freud, temos na experiência primordial de satisfação algo que poderíamos considerar o momento mítico de constituição do sujeito. A sensação de fome que inerva a parede do estômago faz com que o bebê emita um grito, grito este que vai ser tomado pelo outro, nebemensch, como um apelo. Esse outro comparece então com o seio que vai proporcionar a primeira experiência de satisfação. Dessa experiência, resta um traço que vai se inscrever e que vai ser “ativado” da próxima vez que a fome se apresentar. O outro lado da moeda dessa experiência é que, concomitante à inscrição do traço como afirmação (bejahung) temos a expulsão (austossung) de algo que vai ser rejeitado como estranho. O complexo do nebemensch se divide agora “em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória – isto é, pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo [do sujeito].”(Freud, projeto, p. 448)

Temos então a situação em que agora, o bebê não mais espera a intervenção do Outro, mas busca satisfazer-se investindo esse traço mnêmico, ou seja, alucinando. No entanto, o objeto alucinado que o bebê investe não se sustenta como experiência de satisfação já que não existe na realidade. Mais uma vez ele chora, mais uma vez o outro comparece com o seio. Só que agora já se instalou aí uma diferença abissal entre o que ficou registrado como traço e o que se encontra na realidade como objeto, sempre insatisfatório, sempre deixando “a desejar”.

A outra via pela qual podemos resgatar a função da falta na psicanálise é aquela que se apresenta em torno da dialética do falo. Seguindo uma via diferente daquela apontadas pelos pós-freudianos (que propunham a existência de um objeto genital maduro) Lacan vai retomar as elaborações freudianas acerca da primazia do falo e suas consequências para apontar que o que está em jogo aí é, na verdade, a falta de objeto.

A relação mãe – filho já se coloca desde o início como triádica, tendo em visto que o falo já se coloca ai como terceiro elemento. Na subjetividade da mãe, o filho que vem ao mundo é tomado como substituto fálico e, pelo menos parcialmente, ocupa no desejo da mãe esse lugar. Temos então a situação em que o bebê é tomado no “engodo cooptativo” que o faz identificar-se ao falo imaginário materno. No entanto, como diz Lacan, a noção de falicismo implica por si mesma o desprendimento da categoria de imaginário, pois é por uma espécie de reviramento que ele passa a ocupar o seu lugar na dialética subjetiva, não enquanto órgão real, mas enquanto significante.
Isso porque o de que se trata aqui não é do órgão real, mas do falo da mãe, aquele que só é descoberto enquanto faltando em seu lugar, no lugar em que era esperado, e essa é a própria definição de significante já que ele não é outra coisa senão “o símbolo de uma ausência”. (Lacan, Seminário sobre a carta roubada , p.27)

É assim que, por um movimento que se inicia com as presenças-ausências da mãe, a criança vai se dando conta de sua incompletude. Vimos que o movimento do desejo vai ser o de tentar reencontrar o objeto perdido. Mas essa tentativa só pode se dar através da única via possível, aquela da demanda. A demanda implica em colocar aquilo que se apresenta como necessidade nas trilhas do significante, dirigindo-as ao outro. (Figura 01)
Figura 01

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Estamos no domínio da reivindicação, onde espera-se que o Outro possa responder. Mas, no horizonte, o que se espera que o Outro responda é, não pelo objeto da demanda, mas pelo objeto do desejo, aquele perdido e que se busca reencontrar. O desejo é exatamente aquilo que surge nessa “margem onde a demanda se rasga da necessidade”(Lacan, subversão, p. 828)
Figura 02


O desejo é exatamente aquilo que surge nessa “margem onde a demanda se rasga da necessidade” (Lacan, subversão, p. 828)

A frustração, é, para Lacan, a versagung, quebra da promessa, onde o Outro não responde. Não responde, claro, porque do desejo ele também nada sabe. Mas o neurótico é aquele que não se conforma com que o Outro não saiba. (sem IX, p. 215)

Uma das consequências da frustração assim experimentada, é que o sujeito vai tomar o desejo enigmático do Outro como integrante do circuito das demandas, e vai fazer do seu próprio desejo uma demanda no Outro. (Figura 02) No Seminário “A identificação”, Lacan recorre a dois toros que se entrelaçam para demonstrar essa relação que ocorre a partir de uma inversão: desejo num, demanda no outro; demanda de um, desejo do outro, que é o nó onde se atravanca toda a dialética da frustração. A segunda consequência é que esse vazio que corresponde ao desejo do outro, vai, em parte, ser reduzido a um significante, o falo, que passa a ser agora “o objeto metonímico de todas as demandas”. (Sem IX, p.200)

É sobre esse movimento que a operação da castração vem incidir para, fazendo atravessar-se ai o registro da Lei, que irá permitir com que o sujeito escape à essa relação de engodo. Ela implica em que a demanda do Outro seja tomada como desejo pelo sujeito, e essa demanda, Lacan a explicita, se formula assim: “tu não desejarás aquela que foi o meu desejo.” Isso tem uma função de corte. É isso que o mito do Édipo vem a ocupar, sendo necessário que, doravante, seja o pai morto quem venha desempenhar essa função de Lei, que permite o advento do desejo. 

Como elaboramos em nosso trabalho apresentado no encontro da EPFCL-Brasil do ano passado, o neurótico, ao se defrontar com a falta, com o impossível de dizer, recorre ao pai para interditar aquilo que supõe correr o risco de gozar. No entanto, é essa própria impossibilidade que impõe a criação do mito do pai gozador, seu assassinato e consequente instauração do pai simbólico. Todo o mito é construído, afirma Lacan, para velar essa falha, fazendo com que aquilo que era impossível, surja como interditado.

É por isso que o Outro enquanto coisa interditada e o Outro enquanto Lei são a mesma coisa, porque o Outro só existe enquanto efeito de linguagem e é por uma operação de metáfora que ele constitui ao mesmo tempo, a coisa interditada e a lei a que a interdita. Operação que vimos materializar-se na operação do corte no Crosscap, que produz ao mesmo tempo a banda de moebius (por onde passeia o inseto) e essa pecinha faltante (o a) . (Figura 03)
Figura 03


Os Labirintos de Ophélia


Ofélia é uma personagem, fruto da criação artística do diretor espanhol Guillermo Del Toro no Filme “O Labirinto do Fauno”. O cenário é o da guerra civil espanhola. O pai de Ofélia, um alfaiate, morrera há alguns meses e sua mãe fica grávida de um dos clientes do marido: o temível capitão Vidal. Vidal é um dos comandantes do exército franquista, conhecido por sua crueldade e responsável por exterminar os rebeldes contrários ao regime do ditador espanhol.
A gravidez apresenta-se como de alto risco, mas mesmo assim, Vidal decide levar Ophelia e sua mãe para morar com ele em uma instalação militar, no meio da floresta. Chegando lá, sua primeira providência é separar mãe e filha, sob o argumento de que esta precisa de repouso absoluto. Ophelia, sentindo-se sozinha naquele ambiente hostil, consegue driblar a separação imposta pelo capitão e consegue chegar ao quarto da mãe que está muito fragilizada pela gravidez e pela viagem. Nesta cena que abre todo o desenrolar do filme, a menina pergunta á mãe: porque tivemos que vir pra cá? Por que você teve que casar com ele? Ao que a mãe responde que se sentia muito sozinha depois que o pai morreu. Ophelia, um tanto quanto admirada, interpõe: sozinha? Mas você tinha a mim! Ao que a mãe responde: existem coisas que uma mulher precisa que você só vai entender quando crescer.
o Fauno
Deparada ao mesmo tempo com a fragilidade da mãe e com seu desejo enigmático, Ophelia mergulha em mundo de fantasias onde conhece o Fauno, uma criatura metade humana, metade bode, que a convence de que ela é a princesa perdida do reino subterrâneo e que precisa realizar três tarefas para retornar para seu reino.
Uma dessas tarefas consiste em resgatar um certo punhal mágico. Nessa que é uma das mais belas e impactantes cenas do filme, Ophelia precisa atravessar um portal para procurar o punhal, mas é advertida pelo Fauno de lá encontrará um grande banquete exposto: ela não deve, em hipótese alguma, comer nada. 



Chegando lá, ela encontra o tal baquete e uma figura estranhíssima que jaz inerte na cabeceira da mesa. O monstro horrível tem apenas dois buracos no lugar das narinas e um outro no lugar da boca. Sobre a mesa, em um prato estão dois olhos arrancados. Nas paredes imagens de infanticídio anunciam o que está por vir. Apesar de todo o horror da cena, Ophelia transgride a proibição do fauno e come uma uva. Nesse momento o monstro toma vida, coloca os dois olhos que estavam na mesas em buracos na palma da mão e começa a perseguir Ophelia e as fadinhas que a auxiliam na tarefa.

Figura 04 - Santa Luzia de Zurbaran
Essa cena aporta os elementos que se encontram no ponto mesmo onde surge o sujeito. Após se deparar com o desejo enigmático do Outro (tem coisas que uma mulher precisa...), a pulsão é forçada a realizar uma torção: “Por um reviramento que não é uma simples negação da negação, a potência de pura perda surge no resíduo de uma obliteração.” (A significação do falo, p. 698).  A ausência do objeto ali onde ele era buscado impõe à pulsão um retorno: “assim, o curso se completa quando o ciclo pulsional atinge o ponto de partida, a saber, a fonte pulsional. E, no exato momento em que o circuito se fecha, um efeito se inscreve no lugar de onde brotara o empuxo. Esse ponto concerne ao sujeito. (Godino, p. 68)
Pulsão escópica e pulsão oral convergem na sedução de um fausto banquete. Os olhos arrancados sobre o prato, assim como na “Santa Lucia” de Francisco de Zurbarán que encontramos no Seminário da Angustia (Figura 04) , apontam para esse objeto que cai do sujeito em sua relação com o desejo, objeto ao qual o sujeito é reduzido na cena fantasmática que suporta seu desejo.  
Figura 05- Cronos devorando seus filhos de Goya
Ainda nessa cena, somos presenteados pelo diretor com uma representação de “Cronos devorando seu filho” (figura 05) de Goya, onde monstro arranca e come a cabeça de uma das fadinhas, enquanto Ophelia, por muito pouco, consegue escapar. Está feito. O pai primitivo comparece em sua função castradora e Ophelia agora “sabe” que “Dizer que o Outro é a lei ou que é o gozo enquanto proibido, é a mesma coisa.” (Lacan, Sem IX, p. 241)
O que se segue no filme tem todos os elementos do romance familiar do neurótico: o desejo da morte do irmão, a fantasia de pais melhores que os seus (rei e rainha) e o grand finale onde Ophelia se oferece em sacrifício no lugar do irmão: instauração do Supereu como introjeção da lei e imperativo de gozo.
O artista sempre antecipa o psicanalista, embora o faça sem saber....


Um comentário:

  1. Eu vi você apresentando esse texto ano passado. Ele é ótimo! Ganhei demais aqui na “releitura”, até parece que entendi um pouco mais... Cê devia postar aquele da Alice também. Beijo!

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