quarta-feira, 16 de agosto de 2023

A Bobagem deles e a nossa


 

Quando Freud (1909/2015) aceita tratar à distância o pequenino fóbico que ficou conhecido como "caso Hans", ele combina com o pai do garoto que, quando o filho manifestasse sua fobia, os pais diriam a ele que seu problema com os cavalos não passava de uma "bobagem". Desde então, a criança passa a usar esse significante pra nomear o indizível de seu sintoma: "ontem eu saí de casa e senti a bobagem"; “Uma vez que saí com mamãe, mesmo com a minha 'bobagem'; "o professor Freud vai poder me ajudar com a minha bobagem". Hans sabe uma coisa que muitos adultos não sabem: é justo nessa bobagem que mora algo muito íntimo de um sujeito. É justamente disso que uma psicanálise se ocupa: da nossa bobagem, aquela que não revelamos nem para nós mesmos.

No entanto, é justamente sob esse significante que os autores Natalia Pasternak & Carlo Orsi (2023) arrolam a psicanálise ao lado da astrologia e de práticas de saúde orientais. sob a velha acusação de “pseudociência” no recém-lançado “Que Bobagem! Pseudociência e outros absurdos que não merecem ser levados a sério” de 2023.

No livro, cujo título é bastante autoexplicativo (vai ser difícil outra obra conseguir reunir tanta bobagem sobre a psicanálise) os autores partem do princípio de que a ciência não é apenas “mais uma lógica” entre outras, mas sim o “uso mais correto e refinado possível quando o assunto é descrever, controlar e prever a realidade factual e o mundo natural” (Pasternak & Orsi, 2023, p.10). Que a ciência seja o mais refinado modo de pensar o mundo natural que já existiu não está em questão. No entanto, caberia aos autores um pouco mais de leitura no campo da epistemologia que, com todo o conhecimento acumulado nesse campo que, não só questiona a tal “realidade factual” e o “mundo natural” , mas também já reconhece que a física, química e biologia, por si só, não conseguem dar conta da complexidade da vida humana. Ficando só no campo da medicina, podemos citar as pesquisas recentes no campo da neurociência que, até hoje, não só não encontram um causa exclusivamente biológica ou genética para os chamados “transtornos mentais”, como reconhecem, através da noção de “epigenética”, que há na verdade uma complexa interação entre os genes e o chamado “meio ambiente”, o qual participa do modo como isso se expressa em determinado fenótipo (Freitas-Silva e Ortega, 2016). Se considerarmos nesse “meio ambiente” o fator “linguagem” temos elementos suficientes para afirmar que a experiência do ser falante nunca se reduz ao fato objetivo, mas participa aí, também, o modo como cada um interpreta e subjetiva a realidade. 

 Mas, entrando no que nos interessa aqui, vejamos como os autores abordam a psicanálise: ela seria uma psicoterapia que promete aliviar e/ou curar as dores da mente e que, como terapia, falha quando é incapaz de realizar as curas que promete (Pasternak & Orsi 2023, p.11-12). Em primeiro lugar, a psicanálise, embora tenha efeitos terapêuticos, não é uma psicoterapia. Ela não tem como objetivo principal aliviar dores ou curar. A psicanálise interroga o sujeito nas suas relações com o desejo e gozo, convocando-o a uma tomada de posição.  

 No entanto, ignorando toda a discussão já existente nesse campo, o livro em questão enfia a psicanálise num saco de gatos chamado “terapias psicodinâmicas” em que cabem de Freud a Jung, passando por Lacan. Autores com matizes epistemológicos tão diferentes são reduzidos a uma mesma categoria teórica sem nenhum critério. Além disso, as tais psicoterapias psicodinâmicas reivindicariam uma posição privilegiada na hierarquia do conhecimento clínico, argumentando que suas elaborações teóricas e práticas "encontram-se fora - de fato, acima - do alcance das ciências" (Pasternak & Orsi 2023, p. 197). Como eles não citam fontes dessa pretensa reivindicação de superioridade da psicanálise, não dá para saber como chegaram a essa conclusão, inverídica, diga-se de passagem.

 Já o conceito de “inconsciente psicodinâmico” teria sido, segundo os autores, comparado (ninguém sabe por quem) a uma mente paralela, uma espécie de calabouço, “um repositório para onde a mente baniria os desejos inconfessáveis, pensamentos vergonhosos, impulsos inomináveis, motivações pérfidas, memórias indizíveis e, dependendo da corrente teórica que se adere, um monte de outras coisa” (Pasternak & Orsi 2023, p.162). 

 Afirmações essa são feitas sem citar ninguém. Aqui, como em diversos trechos do texto, não parecem ter lido Freud (e de fato não o citam diretamente em nenhum momento), pois se ele não precisou adjetivar o termo inconsciente (que de fato já existia e ainda é usado até hoje em diferentes acepções) foi por tê-lo elevado a categoria de conceito, e um conceito muito mais complexo do que esse baú de obscenidades que os autores citam.

Depois, os autores afirmam que, levada ao extremo, a doutrina do inconsciente psicodinâmico sugere que os únicos pensamentos autênticos que uma pessoa tem são os que o psicanalista lhe revela. Todo o resto não passaria de conteúdo inconsciente disfarçado, sintomas de traumas e desejos reprimidos. Isso daria ao analista um potencial manipulador e autoritário que já teria sido notado por mais de um crítico. (Pasternak & Orsi 2023, p.211): 

 

“De repente, podemos acusar homofóbicos de estarem possuídos por desejos homossexuais que eles mesmos ignoram; filantropos, de pulsões egoístas; pecadores, de sofrerem de santidade enrustida e, inversamente, santos de não serem nada mais do que pecadores insinceros.

O que um autor realmente quer dizer é, na verdade, o oposto daquilo que se lê na página (este capítulo todo prova que morremos de amores reprimidos pela psicanálise, alguém poderia dizer)”.

 

Bom, não sou eu quem os faz dizer! Essa é, segundo Lacan (1972/2003) o elemento mínimo da dimensão interpretativa, porque o analista só recolhe da fala do analisando aquilo que este mesmo lhe revela em seus tropeços com a linguagem. Freud também é explícito em recomendar que é preciso receber cada novo caso como se fosse o primeiro. Ou seja, o analista não pode usar um saber previamente acumulado para interpretar pois, de fato, não sabe sobre o inconsciente de seu analisante, antes que ele mesmo entregue a sua verdade. No entanto, ironicamente, para os Pasternak & Orsi (2023), um psicanalista seria alguém que diz, “eu sei o que você está pensando melhor do que você”. Nada mais longínquo do que a experiencia de uma psicanálise do que isso.

 Por fim, para os autores o inconsciente seria completamente insustentável tanto do ponto de vista lógico quanto da evidência empírica. (Pasternak & Orsi, 2023).  Qual a fonte que usam para fazer essa afirmação tão categórica? Não se sabe. Mas, continuam eles, se esse inconsciente psicodinâmico não está lá (que é a premissa que temos que considerar verdadeira para que a conclusão que se segue seja válida):  

 

“(...) então todo o empreendimento psicanalítico faz tanto sentido quanto hepatoscopia, a arte de prever o futuro examinando o fígado de animais sacrificados.

E que motivos temos para acreditar que esteja lá? A palavra dos psicanalistas e de alguns de seus clientes: a falácia da “experiência clínica”. O que é exatamente o mesmo nível de evidências que existe a favor da hepatoscopia (...)”. (Pasternak & Orsi, 2023, p.163)

 

Aqui chegamos ao cerne da acusação que motiva o livro: a alegada pseudocientificidade da psicanálise. A comparação com a hepatoscopia mostra como desconhecem as elaborações lacanianas sobre o inconsciente estruturado como uma linguagem, já que a prática da sua decifraçao estaria muito mais próxima de um Champollion decifrando a estrutura de um código do que de "áugures e sacerdotes". 

 Os autores até se arriscam na proposição de uma saída para a psicanálise, que chega a ser engraçada de tão equivocada: para que ela comprovasse sua validade, teria que se prestar a testes estatísticos, selecionando um objetivo claro – a superação de fobias, por exemplo – e comparar o progresso do grupo de pacientes testados com os que seguem outro tipo de terapia e um terceiro grupo placebo que seria tratado por um ator, fingindo ser um terapeuta. Quanta bobagem! E depois ainda é o trabalho com o caso clínico que é chamado por eles de “evidências anedóticas”.

 Quando se trata de comprovar a eficiência da psicanálise, os relatos clínicos seriam, segundo os autores, insuficientes, inconclusivos e, no limite, inválidos como fonte de evidência: “Os pacientes insatisfeitos não voltam. Os mortos não falam. A memória é seletiva, os vieses e a vaidade do profissional filtram aquilo que prestará mais atenção.” (Pasternak & Orsi, 2023, p.197) Bom saber! uma afirmação dessa vinda de alguém que aposta na ciência como meio de análise do mundo “natural” e da realidade “factual” é interessante. 

 Mas quando se trata de deslegitimar a psicanálise, eles se apoiam num único caso de Freud para comprovar não só sua ineficácia, mas inclusive a suposta iatrogenia da psicanálise: o caso que ficou conhecido como “homem dos lobos”. Sim, é um caso em que Freud reconhece não ter conseguido bons resultados, assim como em vários outros que ele publica. Freud é adepto da prática de publicar os casos em que fracassa, e inclusive extrai avanços de seus erros. Mas os autores apresentam tudo isso como se ele agisse de má fé, maquiando seus achados. Qualquer leitor da obra de Freud sabe que ele chega a ser de uma sinceridade desconcertante quando se trata de apontar seus impasses na clínica, inclusive descartando conceitos e reformulando sua teoria quando esses impasses se mostram insustentáveis.

A “falácia da experiência clínica” eu não conhecia, mas conheço outra que se aplica muito bem à argumentação de Pasternak e Orsi: a falácia do espantalho. Em lógica argumentativa, a falácia do espantalho consiste em uma espécie de reducionismo aliado à distorção dos argumentos que se deseja atacar. O autor, desse modo, deforma os argumentos da outra parte, selecionando, modificando ou acrescentando o que for possível para desacreditar ou ridicularizar seu opositor. É exatamente isso que fazem os autores com a psicanálise, seja pela superficialidade de suas fontes, seja pelo completo desconhecimento dos conceitos, seja por embaralhar alhos com bugalhos sem nenhuma vergonha. 

 Além da falácia do espantalho, o texto recorre também à falácia ad hominem ao pintar Freud como um charlatão antiético, cuja pesquisa seria toda baseada em fraudes, fabricações e distorções. A correspondência de Freud com Fliess e com Martha Bernays revelada na integra recentemente comprovaria isso. Quanto a isso, eles não citam nenhuma carta específica, mas dizem que a bibliografia a respeito é abundante, embora citem apenas a obra de um norte americano intitulado Frederick Crews, conhecido por seu revisionismo e pouco respeitado entre os historiadores da psicanálise. (RUDGE, 2001). 

Segundo os Pasternak & Orsi (2023), o pai da psicanálise cometeu exageros e distorções que apenas servem à sua vaidade e ajudam a fazer suas ideias soarem mais plausíveis, enquanto seus casos seriam imposturas do início ao fim. Sim, Freud seria um mentiroso contumaz, movido pela vaidade e que não teria hesitado em deturpar os fatos para que coubessem em suas teorias. Por fim, afirmam que “a psicanálise é uma viagem cujo princípio é acatar um conjunto de premissas que permite concluir qualquer coisa e seu oposto, tendo como único critério a conveniência do momento, que é não só inútil, como desonesta. (...) Uma chave que parece servir todas as fechaduras, provavelmente não vai abrir nenhuma, mas pode quebrar várias”.(Pasternak & Orsi, 2023, p.212).

 Bom, em determinado ponto os autores se fazem a pergunta que não quer calar: “como um sistema baseado numa lógica tão pueril pode ter se tornado tão popular por quase um século e, entre tantas pessoas cultas, educadas e inteligentes?” Pois, então! Que coisa mais curiosa, não é? As respostas que os autores fornecem para o fato de a psicanálise ter se mantido ao longo das décadas são:

 a)   A reverência à palavra de supostos gênios fundadores como Freud. 

 b)   A sedução exercida pelos psicanalistas: “não se deve subestimar a sedução exercida pelo poder de psicanalisar. Quem domina as chaves do inconsciente é como um visionário em Terra de cegos, um apóstolo entre os gentios. Alguém que conhece as pessoas muito melhor do que elas mesmas”. (Pasternak & Orsi, 2023, p.211)

  c)    O glamour que a psicanálise confere aos seus adeptos: “Passou a ser chique usar as ideias derivadas do trabalho de Freud” (Pasternak & Orsi, 2023, p. 200).

  d)    E, por fim, a força bruta: A psicanálise seria o equivalente a uma tomada de reféns por terroristas. Se ela for explodida leva muita gente junto. 

 Ou seja, a psicanálise se sustentou por tantos anos entre intelectuais e pessoas inteligentes porque elas ou são ou muito crédulas, ou muito vaidosas ou simplesmente sofrem de síndrome de Estocolmo.

 Sinceramente, um texto com esse nível de profundidade não passaria numa banca de monografia de graduação. Pode-se argumentar que não é um texto acadêmico, mesmo assim, fazer acusações tão sérias sem nenhum rigor argumentativo, iguala os autores em leviandade aos negacionistas que Dra. Pasternak combatia durante a pandemia. Esperemos, para nossa proteção imunológica, que ela se saia melhor como microbiologista.

 Bom, resumi aqui para vocês o livro porque não ia fazer como os autores e ficar comentando levianamente algo que não tivesse lido. (Claro que acabei contribuindo um pouquinho mais para as vendas do livro, que parece ser o que eles queriam quando escolheram um título tão apelativo). Mas meu intuito principal em ler essa obra não foi o de me deter em confrontar os argumentos, primeiro porque eles são tão mal construídos que eu teria que revisitar e desconstruir cada uma das premissas equivocadas do texto, ou seja, uma perda de tempo. Depois porque, como diz Lacan, a psicanálise não tem nada que “cãovencer”[1]: “o próprio da psicanálise, é de não vencer, cão ou não” (LACAN, 1972, p. 72). 

 Apesar disso, encontrei nesse texto dois pontos que vale a pena cotejar, não para respondê-los, mas porque eles nos permitem avançar na própria psicanálise (afinal, como já disse Lacan, o efeito do discurso da histérica é aquele que toma o outro como mestre para fazê-lo produzir). 

 O primeiro desses pontos é sobre a própria acusação de que a psicanálise seria uma pseudociência. Tenho visto alguns psicanalistas responderem a isso afirmando que a psicanálise seria, sim, uma ciência, mas uma ciência de outra ordem. Acho que esse argumento é equivocado e acho importante desenvolver por quê. O segundo ponto é aquele em que o livro afirma que, se houver algum benefício da psicanálise seria mais pela pessoa do terapeuta do que pela teoria. Embora careça de algum desenvolvimento, aqui a hipótese de Parternak & Orsi (2023) talvez passe mais perto do alvo. Esses são os únicos dois pontos do livro (no que tange à psicanálise) que eu acho que a “bobagem” rende um bom debate.

 Mas então, seria a psicanálise uma ciência? Para continuar acompanhando a discussão, clique nesse link !

 

Referências

Freitas-Silva, L. R., & Ortega, F. (2016). A determinação biológica dos transtornos mentais: uma discussão a partir de teses neurocientíficas recentes. Cadernos De Saúde Pública, 32(8), e00168115. https://doi.org/10.1590/0102-311X00168115

 

Freud, S. (2015). Análise da fobia de um garoto de cinco anos (“O pequeno Hans”). In S. Freud, Obras completas (Vol. 8, pp. 123-284). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1909)

Lacan, J. (2003). O Aturdito. In J. Lacan. Outros escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972)  

Pasternak, N.; Orsi, C. Que Bobagem! Pseudociência e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023.

Rudge, A. M. (2001). Pressupostos da “nova” crítica à psicanálise: o revisionismo freudiano e a epistemologia da psicanálise. Temas em psicologia (Ribeirão Preto), 9(3), 179-186. Recuperado a partir de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v9n3/v9n3a03.pdf 



[1] Neologismo criado pelos tradutores do seminário XX para contemplar o jogo de palavras que Lacan faz em francês com a palavra “convaincre” (convencer) que, separando as sílabas, ficaria “con vaincre”, ou seja, “vencer o idiota”.  O que é bem o caso que comentamos nesse texto, diga-se de passagem.

 linklink

Nenhum comentário:

Postar um comentário