quinta-feira, 3 de agosto de 2023

O Pop Não Poupa Ninguém


 

por Lia Silveira

 

A Psicanálise pode ser pop? Foi o intrigante título proposto pela curadoria do Simpósio Internacional de Psicanálise da UNIFOR, a quem agradeço em nome das professoras Sabrina Matos e Juçara Mapurunga pelo convite e pela oportunidade de pensar esse tema.

 

A primeira pergunta que a gente pode se fazer é “o que é mesmo ser pop?”. Numa rápida pesquisa que fiz descobri que o termo se refere a certo tipo de manifestação cultural, aquela também chamado “cultura de massa”, a ser distinguida da “cultura popular”. Enquanto a última caracteriza-se pelas manifestações artísticas de um povo (suas danças, festas, crenças, artesanatos, etc.) a cultura de massa ou cultura pop, é aquela industrializada, produzida e disseminada pela indústria cultural que, com intuito mercadológico, populariza músicas, roupas, produtos e pessoas. Podemos pensar assim: enquanto a cultura popular é a expressão do modo de ser desejante de um povo, a cultura pop modula o que esse povo deve desejar reduzindo a sua expressão ao consumo.

 

Esse modo de apropriação do desejo a partir da oferta de objetos de consumo foi definido por Jaques Lacan como sendo a base do que ele chamou de discurso capitalista. Um discurso, para Lacan, é um certo modo de ordenação do gozo, que articula através da linguagem os modos de relação entre o lugar do agente, do outro, da verdade e do produto. 

 

Como seres falantes, não contamos mais com o instinto para nos orientar. Resta-nos, portanto a linguagem, como único recurso para nos apalavrar diante da precariedade em que nos encontramos para lidar com as exigências da pulsão. Não existe um uma realidade pré-discursiva, ou seja, toda relação que estabelecemos com a realidade é mediada de algum modo por um discurso. No discurso do mestre, por exemplo, temos o ponto inaugural do sujeito, na inscrição de um significante sob o qual este assente em se fazer representar. Trata-se, portanto, de um processo de alienação em que o significante, que vem do outro, representa o sujeito para outro significante. Essa operação, por sua vez, deixa um resto, impossível de ser simbolizado, uma vez que a apalavra não consegue recobrir tudo da experiência.

Ocorre que no ponto em que nos encontramos na ordenação discursiva chegamos, pela via de uma torção nesse discurso do mestre, à produção daquilo que Lacan chamou de discurso capitalista.

A principal mudança que o discurso capitalista opera é a ausência de qualquer relação entre o agente e o outro, o que denuncia sua ineficácia para fazer laço social, para fazer o amor, por exemplo: “nesta montagem de discurso o sujeito ($) só se relaciona com a mercadoria de objetos (a) comandados pelo mestre (S1)” (SOLER, 2011) 

Dessa forma, o discurso capitalista vela o ponto de impossível que se coloca para todo ser falante, criando a ilusão da oferta de objetos de consumo que poderiam tamponar a sua falta estrutural. A satisfação que esses objetos produzem, no entanto, é bastante precária, o que faz com que o circuito se renove e novos objetos se tornem “indispensáveis”, exigindo a substituição veloz e imediata dos objetos de consumo, os gadgets, garantindo, assim, que a reprodução do discurso seja perpetuada (ALBERTI, 2000). 

Nesse curto-circuito de consumição as engrenagens não podem parar de girar, nem que seja às custas da combustão do próprio corpo, como mostra muito bem a síndrome de burnout, tão característica da nossa época. Nada é relevante se não puder ser transformado em mais-valia, não só as coisas em si, mas tudo aquilo que participa do horizonte da subjetividade do ser falante passa a ser interessante na medida em que possa ser comercializado. Como diz a frase da música do Engenheiros do Havaí: o pop não poupa ninguém.

 Se o pop não poupa ninguém, certamente não iria poupar também a psicanálise. Temos nos deparado nos últimos anos com a circulação frequente do significante “psicanálise” nas redes sociais, seja através de instituições que se propõem a formar psicanalistas, seja pelos próprios sujeitos que se autorizam analistas e produzem conteúdos às vezes (não todos) bastante afinados à estética desse universo. Mas será que a psicanálise pode se manter existindo dentro dessa estrutura? Examinemos alguns pontos:

1 - O pop é palatável e fácil de consumir como um big mac. A psicanálise não é algo fácil de digerir. Não porque ela precise ser hermética e inacessível. Mas porque à medida que nos aproximamos dela, algo em nossa própria angústia é chamado a comparecer. É certo que isso não acontece com todos. Há aqueles que se mostram indiferentes a esse encontro. Mas uma vez que se é tocado de algum modo por esse saber, seja por seu fascínio seja pela sua repulsa, algo desse indigesto objeto causa vai se apresentar.

2 - O pop é rápido, time is Money, é o lema do capitalismo. Mas uma psicanálise requer tempo. Como diz Freud, poderíamos até pensar que estamos diante de uma forma de magia, quando através de palavras, algo do sintoma se dissolve. Mas só se pudéssemos falar de uma magia lenta.

3 - O pop almeja atingir o maior público possível para alcançar cada vez mais visibilidade. As redes sociais estão aí a serviço disso. O maior número de likes possível. A psicanálise não é um discurso expansionista. Ela não é o que faz bruá-bruá, como diz Lacan. Ela não lota estádios como os coachs. Ela não visa criar “seguidores”. Ela também não é o intelectualismo, o elitismo. “A psicanálise não é pra qualquer um”, ouvimos as vezes com certo pedantismo. Mas não é de presunção que se trata. Realmente a psicanálise não é pra qualquer um, ela é, como diz a colega Zilda Machado, “A psicanálise é pra qual quer?” qual dentre tantos vai querer se deparar com a sua angústia e enveredar realmente por ela para chegar a sua verdadeira singularidade, aquela que dá sustentação a seu desejo?

4 - Ser pop é estar na moda... Mas a moda passa e gera o lixo, o resto. O motor do pop é a obsolescência programada que gera montanhas de lixo. Que lugar haveria para a psicanálise aí? A psicanálise é o discurso que recolhe esse lixo, o analista é um minerador de ocorrências involuntárias, diz Freud. Um apanhador de desperdícios, podemos dizer com Manoel de Barros. Ela lida com tudo aquilo que não tem valor de troca, apenas valor de gozo.

 Desses pontos podemos deduzir, então, que pode até haver (e há muitas) tentativas de apropriação da psicanálise por parte do discurso capitalista em fazer existir uma psicanálise pop, produto de consumo. Mas como Midas, ao tentar transformar o discurso psicanalítico em ouro, eles o condenam a não servir mais para nada. Resta muito pouco ou quase nada da operatividade da psicanálise nesses produtos ofertados em seu nome. E isso por uma questão de estrutura. 

 O discurso analítico é estruturalmente diferente do discurso capitalista (o que não quer dizer que a psicanálise possa sobreviver menos no modo de produção capitalista do que no socialismo). Mas é de outra lógica que se trata, uma lógica que, inclusive, fura a lógica do modo de produção capitalista.

Num texto chamado “Nota aos Italianos » Lacan diz que há um clamor próprio á humanidade, ela clama por alívio do seu sofrimento. Só que, nesse clamor há um « não querer saber nada » que lhe é ao mesmo tempo inerente. Não querer saber nada de que? Do furo que habita o próprio saber, que no coração de toda experiência do ser falante há um impossível de ser suprido com o saber. Enquanto a civilização e os discursos que a sustentam se fundam por ignorar esse fato de estrutura, o discurso analítico é o único que não somente reconhece esse furo, mas que faz dele mesmo um fundamento de sua experiência.

Ele é o único discurso que se interessa por aquilo que ninguém quer saber: a falha, o fracasso. Não por gosto pelo sofrimento, mas por saber que a única forma de tratamento possível da angústia passa justamente por incorporar de algum modo a falta que é efeito da linguagem sobre o corpo.

 Para finalizar, podemos passar então a questão da transmissão e da sobrevivência da psicanálise na era da internet e suas ferramentas, o Instagram, do Tweeter, do Tik Tok e do ChatGpt. A psicanálise pode se apropriar de alguma maneira dessas tecnologias para continuar se transmitindo? Será que ela tem chance de sobreviver na era cibernética?

 Para Lacan, a chance de a psicanálise sobreviver é que alguma coisa nisso tudo continue fracassando. E para isso, nós, como analistas não precisamos fazer nada. Não é do analista que depende o futuro daquilo que fracassa sempre, mas o que depende dele, sim, é a resposta que dará diante do retorno disso que fracassa e que insiste sob a forma de angústia. 

Em 1974 quando Lacan dava uma entrevista para uma revista italiana, o auge do que ameaçava a civilização era a televisão. Sugiro que leiamos esse trecho da entrevista substituindo “televisão” por “internet”:

 

“É verdade, existem à nossa volta coisas horripilantes e devoradoras, como a televisão pela qual uma grande parte de nós é fagocitada. Mas isto é apenas porque existem pessoas que se deixam fagocitar, que até inventam um interesse para aquilo que elas veem. E depois há outras coisas monstruosas devoradoras de outra maneira: os foguetes que vão à lua, as pesquisas no fundo dos oceanos, etc. Todas as coisas que devoram. Mas não há por que se fazer um drama disso (...) É uma revivescência da religião, não é?  E que melhor monstro devorador do que a religião? É uma festa contínua com a qual se divertir por séculos, como isso já foi demonstrado. Minha resposta a tudo isso é que o homem sempre soube se adaptar ao mal.  O único real que podemos conceber, ao qual temos acesso, é justamente este, será preciso se fazer uma razão: dar um sentido às coisas, como dizíamos. De outra forma, o homem não teria angústia, Freud não teria se tornado célebre, e eu seria professor de segundo grau” (LACAN, 1974).

 

A nossa aposta, portanto, é que enquanto houver linguagem, haverá furo no saber e havendo furo, haverá quem se angustie. E quando há angústia, há chance de que alguém queira saber algo do seu desejo. O futuro da psicanálise, portanto, não está em saber se vamos usar ou não as ferramentas “pop” para fazer sua transmissão. Mas que haja sempre alguns que, em atravessando sua própria experiência com a angústia e com o desejo, possam, sem ceder do seu desejo,  sustentar aberto o furo por onde se poderá fazer chegar a outros o contágio da peste.      

 

Referências

 

ALBERTI, S. (2000) O discurso do capitalista e o mal estar na cultura. Acesso em 30.Out.2016.

 

LACAN, J. (1974) Entrevista à Revista Panorama. Acesso em 03.Ago.2023.

 

SOLER, C. O discurso capitalista. Stylus Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 22, p. 55-68, 2011.


 

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