quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Mas, enfim, seria a psicanálise uma ciência?

 “A ciência, se a examinarmos de perto, não tem memória. Ela esquece as peripécias em que nasceu uma vez constituída, ou seja, uma dimensão de verdade, que é exercida em alto grau pela psicanálise" (Lacan, 1965/1998, p. 884).

OBS: Esse texto é continuação do post anterior. Se você ainda não leu a primeira parte, clique aqui antes de prosseguir.


O surgimento da ciência moderna tem suas condições de possibilidade em determinado momento histórico que é chamado por Foucault em A Hermenêutica do Sujeito (2006) de “momento cartesiano”.

Ao afirmar a possibilidade de aceder ao conhecimento através da aplicação de um método, Descartes abre espaço para uma nova configuração das relações entre sujeito e verdade, onde a possibilidade mesma do acesso a esta verdade depende, doravante, do próprio homem e não de dogmas divinos, como regia o teocentrismo medieval.

O método cartesiano toma a dúvida como ponto de partida: é preciso duvidar de qualquer coisa que não se possa reconhecer como evidente. Após duvidar de tudo que é possível duvidar, chega à constatação de que se há algo de que não pode duvidar é de que ele mesmo pensa. (Descartes, 1996 p. 255). Esse raciocínio o leva a elaborar o que ficou conhecido como o cogito cartesiano, fundamento de toda a racionalidade moderna: penso, logo sou.

Lacan em seu texto “Ciência e Verdade” recorre à definição aristotélica da causa para elaborar o que está em jogo na relação de cada um dos saberes (magia, na religião e na ciência) no vínculo da verdade com a causa[1]. E, a partir daí, vai poder situar a especificidade da psicanálise em situação de ex-centricidade em relação a esses outros campos.

Na ciência, o que ocorre é que, da verdade como causa, ela nada quer saber, centrando-se inteiramente na causa formal. As questões do saber e da verdade são reduzidas à questão do método, da formalização, e nada mais do lado do sujeito precisa ser questionado, como por exemplo, o desejo do cientista... Voltaremos a isso um pouco depois.

A ciência progride pela vontade de domínio sobre o real. Encontrar as respostas para tudo aquilo que se atravessa em nossa história como enigma, obstáculo, e no limite, para a própria morte. No entanto, esse progresso científico é balizado muito mais pelos novos obstáculos que cada teorização encontra, do que pelos próprios avanços obtidos. Essa é a tese de Koyré, filósofo como quem Lacan irá dialogar. (CABAS, 2003, p.200)

No entanto, o curioso do discurso científico é que, desses limites com os quais ele vai se deparando (e que constituem sua verdade), ele não quer saber nada. Ele foraclui a verdade como causa, assim como sutura o sujeito eliminando a questão do seu desejo. É assim que a ciência moderna nasce por um movimento que elimina as relações do sujeito com a verdade, por uma valorização do “como funciona”, em detrimento do “qual o agente” ou “qual a finalidade” de uma ação.

 É interessante observarmos que, ao mesmo tempo em que cria as condições para o surgimento do sujeito (antes do momento cartesiano, o único agente do universo era Deus), o nascimento da ciência moderna expulsa de suas condições de possibilidade exatamente tudo que diz respeito a esse sujeito. Isso porque, a partir daí, nada do “ser de sujeito” do cientista participa dessa produção do conhecimento. Pelo contrário, espera-se dele a máxima neutralidade.

Vários colegas têm respondido ao livro “Que bobagem!” numa linha argumentativa que advoga pela cientificidade da psicanálise. É essa posição que Pasternak & Orsi rebatem quando criticam a existência de uma “outra ciência”, uma ciência hermenêutica, mais voltada para a mente, para o espírito, que operaria por regras próprias (Pasternak & Orsi 2023, p.200). Não é a posição que penso podermos depreender da obra de Lacan e tampouco é a posição que depreendo da minha própria experiencia com a psicanálise.

A psicanálise opera com o saber e a verdade de modo diferente da ciência, embora também não assuma uma posição de negação da ciência. Podemos dizer que há pontos de aproximação entre esses dois campos do saber, mas também um determinado ponto em que eles se separam, justamente em relação ao lugar da verdade em relação ao saber e no que diz respeito ao ponto de onde se pode extrair uma garantia em relação ao saber. 

Pontos de aproximação, primeiro. A psicanálise, não é fruto de uma revelação, pois, assim como a ciência é produto de uma certa relação com a racionalidade. Sabemos como Freud sonhava com a possibilidade de instalar a psicanálise no Panteão da ciência. Lacan até determinado ponto também o acompanha nessa empreitada. O recurso a linguística, a lógica e a matemática vão no sentido de afastar a psicanálise de qualquer experiência de revelação e de fazer dela algo transmissível em termos científicos.

Na matemática o processo de formalização consiste na redução lógica a partir de uma operação que converte uma sentença ou argumento em uma forma sentencial composta de letras que, por sua vez, vão permitir realizar operações. No final de seu ensino, Lacan recorre mesmo a esse campo do saber como o único que poderia permitir um acesso ao real. “Uma falsa ciência, assim como uma verdadeira, pode ser posta em fórmulas”, diz Lacan no seminário 11. Mas aí também está o distanciamento da psicanálise em relação à ciência. O recurso a essas ferramentas não está dedicado a fazer a psicanálise caber na lógica científica, mas de levar essa lógica até seu último limite para fazer aparecer aí o que nela falha.

O que vai interessar a Lacan não é o que se formaliza das proposições em si, mas seus impasses, pois é justo por eles que o real pode vir a se escrever. É por isso que, apesar de recorrer largamente à formalização lógica, Lacan vai dizer que “O truque analítico não será matemático. É mesmo por isso que o discurso da análise se distingue do discurso científico” (Lacan, 1972, p. 159).

A razão desde Freud comporta uma dimensão que só vai poder ser acessada a partir daquilo que falha nessa racionalidade. De todo modo, essa “falha” também estava em jogo na origem da ciência, na dúvida cartesiana que divide o sujeito e na angústia que acomete Descartes nos pesadelos da agitada noite em San Martinho no ano de 1619; noite que precede “os fundamentos da ciência maravilhosa”. (Baillet apud (Borges-Duarte, 2003 p. 318). 

É esse sujeito dividido e angustiado que Lacan vai afirmar ser o sujeito da psicanálise, o mesmo sujeito da ciência. Antes da ciência moderna, não haveria possibilidade de surgimento da psicanálise pois a questão da “causa” era totalmente atribuída a Deus. Além disso, podemos dizer que a psicanálise nasce de um dos obstáculos encontrados pela ciência positivista: é Freud em seu encontro com as histéricas de Salpetriêre, essas que se constituíam em um limite para o saber científico, não respondiam a ele, não se encaixavam em suas premissas.

Assim, seguindo a tese de Koyré, seria a psicanálise uma ciência, já que nasce do encontro de um obstáculo de uma axiomática anterior? Poderia até ser, se não fosse o fato de que a psicanálise já nasce subvertendo a lógica do discurso científico. Ocorre que Freud, ao se questionar sobre a histeria, não o fez sob os moldes de um observador externo ao objeto estudado. O que a psicanálise sustenta é que o “sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto”. (Lacan, 1966/1998, p. 875).

Foi através da análise de seus próprios sonhos que Freud avançou no terreno da histeria. Isso porque ele, assim como Descartes, se perguntou sobre o que fundamenta a relação de um saber com a verdade. Isso porque dizer “Penso, logo sou” em termos de pensamento, não resolve absolutamente a questão acerca de “o que sou eu?”. Descartes respondeu recorrendo a Deus como sujeito suposto saber, aquele que não o deixaria enganar-se.  Já Freud, ao se perguntar sobre esse lugar da relação entre saber e verdade, respondeu: ela deve ser acessada numa relação com seu próprio inconsciente. Isso porque o que ele descobre é que o sintoma tem um sentido, uma lógica a ser decifrada: isso fala! É, portanto, no próprio texto inconsciente que se manifesta através dos lapsos, sonhos chistes, que a verdade do sujeito deve ser buscada. Ou seja, a psicanálise reintroduz no campo do saber a relação do sujeito com seu desejo, ou seja, com sua verdade.

Para a acessar a verdade é preciso que o próprio sujeito vá se interrogar sobre o seu desejo, ou seja, para a psicanálise, não se trata de uma verdade transcendente, absoluta, universal. Trata-se de uma verdade particular, um “fato de memória”: “lembrar os obstáculos que precederam a conquista de um saber – o que Lacan denomina ‘a verdade enquanto causa’- é o que o discurso analítico define como ‘lembrança da castração’. (CABAS, G. 2003, p. 212). É isso que a ciência não considera, a memória dos obstáculos, e que a psicanálise vai resgatar.

Não sem o ser do analista

É por isso que as provas da eficiência da psicanálise não poderiam, em última instância, ser buscada segundo a lógica da ciência moderna (por mais que até se possam realizar estudos comparando um ou outro de seus resultados segundo os moldes científicos).  A psicanálise não é uma terapia que visa a corrigir um transtorno ou eliminar um sintoma. Ela é o acesso absolutamente singular à relação que um sujeito estabelece com a verdade que o sustenta e com o saber furado de onde pode vir a orientar no mundo. 

Aqui chegamos ao segundo ponto que conseguimos extrair do texto de Pasternak para fazer avançar nossa discussão sobre a separação entre o campo da psicanálise e o da ciência é aquele em que ela aponta que, se a psicanálise traz benefícios, isso deriva mais da pessoa do terapeuta do que da técnica usada ou da teoria que embasa a técnica: “Em termos de saúde física, seria como se os antibióticos e as teorias dos germes só funcionassem bem se o médico tivesse características pessoais favoráveis”.(Pasternak & Orsi, 2023)

Apesar de mais uma vez demonstrar uma ignorância muito grande sobre o campo da clínica (desde seu surgimento a medicina esta advertida dos poderes da sugestão da pessoa do clínico sobre o paciente) aqui os autores têm um ponto. É verdade que em psicanálise a pessoa do terapeuta vai ser convocada, pelo menos na medida em que este compareça com sua angústia.

As acusações de que os autores fazem de que psicanalistas seriam vaidosos e abusariam do exercício de seu poder tem um nome em psicanálise. Trata-se do fenômeno da contratransferência, definida por Freud (1910) como a resposta que surge no médico quando o paciente influencia os seus sentimentos inconscientes. E que, desde sempre, é localizada por ele como algo a ser sobrepujado na experiência analítica, já que o tratamento deve, na medida do possível, ser executado na privação.  

Para Lacan (1960-1961/2010) a contratransferência é índice de que este que conduz a análise está se colocando aí como sujeito, pois o sujeito é aquele que experimenta os afetos. Mas, ao contrário do que possa supor o cientista, o antídoto para a contratransferência não é a neutralidade do método, mas sim, o desejo do analista. Se o analista pode, e deve, deixar de fora do tratamento sua sede de poder, sua vaidade, seus preconceitos, é porque cerniu o suficiente aquilo que causa seu ser de sujeito.

Então a psicanálise é o discurso que, ao invés de dizer “Que Bobagem!”, vai dizer: “venha, traga sua bobagem, venha falar dela aqui até você pode extrair daí a escrita de algo que possa vir a funcionar como garantia do seu ser”.

O que permitiria então que, na condução do tratamento, o analista se abstenha de tomar seu paciente como objeto é “desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a

saber, de chegar às vias de fato com seu paciente, de tomá-lo nos braços ou atirá-lo pela janela” (LACAN, 1960-61/2010, p. 233) . Por isso a indissociabilidade entre a análise do analista e sua aptidão para ocupar esse lugar. Mas, “O que há de ser do desejo do analista para que ele opere de maneira correta? Pode esta questão ser deixada fora dos limites de nosso campo, como o é de fato nas ciências- as ciências modernas do tipo mais garantido - em que ninguém se interroga sobre o que é, por exemplo, do desejo do físico?” (LACAN, 1964/2008, p. 17), se pergunta Lacan no Seminário 11 – Os conceitos Fundamentais da Psicanálise. É exatamente porque esse desejo que concerne ao analista não pode ser deixado de fora, como acontece com o físico, que a psicanálise não pode ser considerada uma ciência e, por extensão, não pode ser também uma pseudociência. Como disse minha irmã e pesquisadora da filosofia da psicanálise Léa Silveira, “a gente não pode chamar um alho de pseudobugalho”.

Para elaborar um pouco mais essa distinção entre o caminho da psicanálise que leva ao desejo do analista e o caminho da ciência que não se pergunta pelo desejo do físico, explorarei a seguir um pouco da vida e obra de Oppenheimer, recorrendo ao recém-lançado e sensacional filme de Christopher Nolan e ao livro que deu origem ao filme “Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano” de Kai Bird e Martin J. Sherwin.  

 

Em breve, no próximo post!



[1] Aristóteles, há mais de 300 anos a.c. definiu as quatro dimensões da causa:

1. a causa materialis, o material, a matéria a partir da qual, por exemplo, uma taça de prata é feita;

2. a causa formalis, a forma, a figura, na qual se instala o material, a forma da taça;

3. a causa finalis, o fim, por exemplo, o sacrifício para o qual a taça requerida é determinada segundo matéria e forma;

4. a causa efficiens, o forjador da prata que efetua o efeito, a taça real acabada.

 

Referências

 

Borges-Duarte, Irene. 2003. O Melão, o Remoinho e o Tempo: Descartes e o Sonho de uma Noite de Outono. Revista Portuguesa de

CABAS, A. G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.  

Descartes, René. [1637] 1996. Discurso do Método. Descartes - Coleção Os Pensadores. São Paulo : Martins Fontes, [1637] 1996.

Foucault, Michel. 2006. A Hermenêutica do Sujeito. Curso dado no Collège de France, 1981-1982. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

Freud, S. (2006). As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. Obras completas, ESB, v. XI. Imago: Rio de Janeiro. (Trabalho original publicado em 1910)

Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário original de 1972-1973)   

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário original de 1960-1961)  

Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In J. Lacan, Escritos (pp. 869-892). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Originalmente publicado em 1966) 

LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O Seminário, 11)

Pasternak, N.; Orsi, C. Que Bobagem! Pseudociência e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023.



 

 

 

 

 

 

 

 

 


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